“As novas regras da IAAF parecem ter prazo de validade"

Maria José Martínez-Patiño fala do tempo em que foi atleta e em que a sua feminilidade foi questionada, e como isso levou a que se tenha tornado uma das vozes mais respeitadas em questões relacionadas com identidade de género no desporto.

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Maria José Martínez-Patiño: "As mulheres têm estado do lado errado da história" Rui Gaudêncio

Em 1985, Maria José Martínez-Patiño era uma barreirista com futuro promissor no atletismo espanhol. Tinha 24 anos, já com uma participação num Mundial (Helsínquia 1983), e preparava-se para competir nas Universíadas de Kobe. Já antes tinha passado o teste de feminilidade, mas esqueceu-se de levar o certificado para o Japão e um novo teste revelou que a jovem atleta tinha cromossomas XY. Na altura, foi a própria equipa a sugerir-lhe que fingisse uma lesão e desistisse da prova. Voltaram a fazer a mesma sugestão nos campeonatos de Espanha no ano seguinte, mas não aceitou - competiu, ganhou a prova e os resultados do seu teste genético foram divulgados publicamente, lançando-a numa luta pelos seus direitos, como atleta e como mulher. Uma luta que viria a ganhar, mas com custos elevados.

Nas últimas décadas, Martinéz-Patiño tornou-se numa das vozes mais respeitadas nas questões de identidade de género no desporto, desempenhando o cargo de assessora científica do Comité Olímpico Internacional (COI) e do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD). De passagem por Lisboa para participar numa conferência promovida pelo Comité Olímpico de Portugal (COP) sobre transexualidade e intersexualidade no desporto, a antiga barreirista recordou ao PÚBLICO a sua luta nos anos 1980 e falou ainda das novas e selectivas regras da IAAF e de como poderão, ou não, condicionar a carreira de Caster Semenya, a atleta sul-africana dos 800m que está no centro de todas estas discussões.

Esta luta que assumiu agora começou por ser um assunto pessoal. Fale-me desse tempo.
Houve um tempo em que eu lutava por mim. Depois, dei-me conta de que a minha luta serviu para muitas mulheres com mutações genéticas e que não têm culpa nenhuma de as terem. Deixei o caminho aberto, sobretudo para as mulheres que têm uma mutação andrógena e que tiveram um crescimento totalmente feminino, apesar de terem sido dotadas pela natureza de um determinado gene. Foram momentos muito difíceis, mas pensei que isto veio ter comigo porque eu era capaz de lutar. Antes, houve casos de outras desportistas que se retiraram discretamente. A mim ofereceram-me essa possibilidade, de me retirar, de fingir uma lesão e de deixar o desporto, e eu disse que não. Pensei que tinha de lutar e que tinha de dar a cara. E aqui estou.

Tudo o que aconteceu tirou-lhe a possibilidade de ter uma boa carreira no atletismo.
Sim, eu estava no melhor momento da minha vida. A minha carreira desportiva estava na sua plenitude, era muito jovem, tinha muita ambição. O que perdi, não foi apenas estudos, dinheiro, recordes, o meu namorado. Perdi algo mais importante, o motor que move as pessoas, aquilo que as leva a fazer as coisas. Perdi a minha ambição desportiva. Depois, ainda tentei continuar a treinar. Fui competir para os EUA, estive a viver durante um ano na União Soviética a treinar com as melhores barreiristas e senti-me bem, era completamente anónima, ninguém me conhecia. Um caso como este, um tema tão difícil, deixa marcas profundas. Já tinha conseguido voltar a competir, já me tinham devolvido todas as minhas conquistas, os meus recordes, os meus direitos… Foi um grande sofrimento, comparável a uma lesão grave quando se está à beira de ganhar uma medalha olímpica.

Acabou com o seu sonho olímpico…
Fiquei a quatro centésimos de ir aos Jogos. Já tinha estado em Campeonatos da Europa, Campeonatos do Mundo, Taça da Europa, mas perdeu-se a ambição e a vontade de continuar a trabalhar no duro.

No meio disto tudo, queriam que se escondesse…
Houve momentos em que tinha de treinar à noite. E todos me diziam que era impossível mudar as regras, que era impossível voltar a competir, e não tinha o apoio de ninguém. Agora as pessoas têm apoio nas redes sociais, Facebook, Twitter… Naquela época, nos anos 1980, não tinha apoio da federação, nem dos políticos. Tudo o que consegui, tive de pagar, pedi dinheiro emprestado para médicos, viagens, ajudas, para mostrar que se tinham enganado. A minha maior alegria foi quando recebi uma carta a pedir desculpa, a dizer que eu tinha razão e a devolver todos os meus direitos. Mas o dano já estava feito, dano desportivo, pessoal e social. Estes casos deixam marcas para toda a vida.

As sequelas que estes casos deixam são difíceis de ultrapassar? 
Houve muitas tentativas de suicídio entre atletas. Na Índia, uma rapariga que foi medalha de prata nos Jogos Asiáticos tentou suicidar-se [Santhi Soundarajan]. Temos de ter regras justas, não ter regras que provocam mais dano do que benefício. A esta rapariga, a Dutee Chand, vamos devolver-lhe as medalhas e deixá-la competir, mas ela ficou marcada para a vida naquela sociedade. Que necessidade havia de a Federação de Atletismo da Índia ter notificado os meios de comunicação que uma atleta sua tinha os níveis de testosterona elevados? Não sabem que a maioria das pessoas nem sabe o que é testosterona? Só olham para aquela rapariga como um rapaz. Só sabem que os cromossomas XY pertencem aos rapazes, nada mais. Não percebem que pode haver uma mutação, que esses níveis andrógenos podem ser não funcionais. Não percebem que ela não tem culpa e que a natureza é diversa. Não. Só vêem que é um homem disfarçado de mulher. E isto tem implicações na sua vida pessoal, quando quiser ter uma relação, ser feliz. Vai ser muito complicado. Todos os seres humanos merecem ser felizes e o desporto, com as suas regras, não pode fazer nenhuma mulher infeliz. Temos a obrigação de fazer as coisas bem.

Qual a sua opinião sobre as novas regras da IAAF que vão entrar em vigor a partir de 1 de Novembro próximo?
Essas regras parecem ter prazo de validade, entre outras coisas, porque Caster Semenya – e essas regras parece que foram feitas para ela – já recorreu para o TAD. Pessoalmente, acho que o TAD lhe vai dar razão, porque tem os mesmos advogados de Chand. O que eu não percebo é que este limite de testosterona se aplique a provas muito específicas, é uma regra ad hoc para uma pessoa em concreto. Se Caster Semenya decide que vai deixar os 800m e escolhe outra prova qualquer, já pode participar. Isto é uma loucura. Ou a testosterona tem influência, ou não tem.

Os atletas que tomavam anabolizantes, eram para 100m 200m, 400m, peso, disco. A testosterona influi em algo mais que não está contemplado nas regras, que é o treino. Para correr nos 800m, Caster Semenya tem de treinar em outras distâncias, 100m, 200m, 1500m, saltos, para poder estar forte. Onde ela utiliza mais a testosterona é nos treinos. No COI, estamos à espera da decisão do TAD, que pode acontecer no final deste ano. Entendo a iniciativa da IAAF, mas vejo-a como uma resposta contundente ao que se passou e menos como uma solução real para um problema. O problema mantém-se. Uma em cada 2000 atletas têm um caso destes. Muita gente tem este problema e muitos deles vão dedicar-se ao desporto. É preciso encontrar uma solução. A genética é assim.

É mais justo fazer testes aos níveis de testosterona que de género?
Os testes que se faziam anteriormente eram rápidos e baratos e fáceis de fazer, mas eram errados e mudaram. Acredito é que não será necessário fazer testes a todas as desportistas. O futuro passa por fazer testes a medalhados e finalistas. Uma rapariga que fica em 38.º na maratona, a alguém interessa os níveis de testosterona? A ela própria, à sua família. Porquê correr o risco de esse teste ser conhecido no mundo. É muito fácil que essas coisas se saibam. É muito difícil guardar um segredo, ainda mais no desporto.

Esta questão que se discute no atletismo também se irá discutir noutros desportos?
Sim, de certeza, sobretudo nos desportos com muito dinheiro envolvido. No golfe, por exemplo, disciplinas onde a força é fundamental, no voleibol. No futebol também, mas a FIFA tem as suas próprias regras, vai por outro caminho.

As mulheres têm sido vítimas.
Absolutamente. Têm estado do lado errado da história.

Nas regras da IAAF, está aberta a possibilidade de haver mulheres a competirem em provas de homens. Acha que isso vai acontecer?
Não. Do ponto de vista de fenótipo, uma mulher que se sinta mulher nunca vai competir com os homens, mesmo que lhe dêem essa possibilidade. Mesmo que que os níveis sejam elevados, nunca terão os níveis que tu tens, por exemplo. Mais testosterona pode produzir mais força e mais agressividade, mas nunca ao nível de um homem. Isso é impensável. E também é impensável outra ideia que anda por aí, de que se vai criar outra categoria de competição. Isso, na minha opinião, é ficção científica.

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