Dez anos de crise: no tempo dos guelfos e gibelinos (II)

Às vezes olho para as nossas polémicas e oposições, entre “blue states” e “red states” nos EUA, entre “remainers” e “leavers” no Reino Unido, e penso: cá estão os nossos guelfos e gibelinos.

O que acontecerá às nossas polémicas quando já ninguém se lembrar delas? Quando já ninguém entender o significado das palavras com que tanta energia gastamos, tanto fôlego perdemos? É pergunta que me faço desde que fui para a Torre do Tombo pesquisar relatórios da censura e ali, à chegada de cada caixa a abarrotar de documentos, ia lendo as palavras que tinham o mesmo efeito sobre as gentes do século XVIII: “polémica probabilista”, dizia um papel; “jansenistas até aos ossos”, dizia outro; “este livro tresanda a pirronismo”, diria um terceiro; um folheto de cordel satirizava os modos dos “peraltas”; um sermão era acusado de ser “jacobita”. E por aí adiante.

E eu apercebia-me: é isto que nos vai acontecer. É, indubitavelmente, o que vai acontecer também às nossas palavras de agora. Daqui a uns anos vai ser preciso um estudante de mestrado coca-bichinhos dos arquivos eletrónicos para nos lembrar o que foi o “Brexit” ou o que era um meme.

E esse será um exercício muito útil, porque as categorias vindas do passado profundo podem ter muito em comum com as nossas perplexidades do presente.

Há muito tempo, muito antes de haver esquerda e direita — antes das revoluções liberais, antes do absolutismo, e até antes do Renascimento —, havia na Idade Média uma grande confrontação política e ideológica entre dois partidos. Eram os guelfos e os gibelinos. Nessa altura não lhes chamavam partidos, mas não andavam longe disso: chamavam-lhes “partes”. E portanto costumava dizer-se “ele é da parte guelfa” ou “ela é da parte gibelina”.

A história dos guelfos e dos gibelinos é uma história transnacional. A distinção começou na Europa germânica, entre quem era fiel à casa nobre de Welfen (de onde saiu o nome “guelfo”) e os fiéis à casa de Hohenstoffen. A coisa atravessou os Alpes e chegou a Itália, onde o grito de guerra dos Hohenstoffen, “weiblingen!”, deu origem à palavra “ghibellini”. Guelfos e gibelinos (também se poder dizer “güelfos”, pronunciando o “u”, e guibelinos, à italiana) vestiam-se de maneira diferente, comportavam-se de maneira diferente e diz-se que até cortavam a fruta de maneira diferente para se distinguirem. Havia ruas e bairros e aldeias e cidades guelfas ou gibelinas, ou tentando manter um equilíbrio difícil entre uma parte e outra. Lembram-se do Romeu e da Julieta, dos rivais Capuletos e Montéquios de Verona? Provavelmente eram guelfos uns e gibelinos os outros.

Guelfos e gibelinos tinham ideias políticas diferentes. Os guelfos eram anti-imperialistas, de tal forma que um documento confirma que uma “senhora guelfa” nunca diria bem de nenhum imperador, nem de Carlos Magno, que já tinha morrido há 500 anos. Os gibelinos, por outro lado, rejeitavam as intervenções do Papa na política. Os guelfos tendiam para o republicanismo, defendendo a autonomia das cidades-Estado italianas (embora com vínculo ao papado como instância espiritual supra-estatal). Os gibelinos tendiam a ser monárquicos e territorialistas. Na medida em que tinham visões do mundo opostas, os guelfos viam o mundo ideal como uma federação de repúblicas. O mais famoso dos gibelinos, o poeta Dante (que fora guelfo na sua juventude), proclamava que o mundo deveria ser governado por uma monarquia universal.

Por detrás da oposição de ideias havia alguma correlação social e geográfica, mas ela não era perfeita. À época vivia-se uma grande transformação económica: eram os primórdios do capitalismo. Os estratos mais confortáveis com a financeirização das cidades tendiam a estar com os guelfos, tal como os artesãos, ou os plebeus que queriam manter a independência das cidades. Os gibelinos seriam mais rurais, fidalgos e feudais. Mas havia nobres e plebeus de um lado e do outro, mesmo que se pudesse dizer que as suas ideias guelfas ou gibelinas fossem contra os seus interesses económicos e sociais.

Florença era uma cidade principalmente guelfa. Siena era gibelina. Génova mantinha o equilíbrio: nas suas vereações havia quotas para nobres e plebeus, artesãos pobres e ricos, e sempre oito guelfos e oito gibelinos para cada lado — e o mesmo valia em cidades que eram colónias de Génova, até na Península da Crimeia (sim, na Crimeia que hoje é disputada por russos e ucranianos). A certa altura, os guelfos tomaram conta de Florença e expulsaram os gibelinos (Dante foi para o exílio). Passado algum tempo, nasceram novas divisões, que passaram a ser entre os “guelfos negros” que defendiam os privilégios da nobreza, e os “guelfos brancos”, que eram igualitaristas e pró-plebeus. No Renascimento estas divisões já estavam meio esquecidas, mesmo antes de Savonarola estabelecer em Florença a sua tirania teocrática. O absolutismo acabou com elas.

Às vezes olho para as nossas polémicas e oposições, entre “blue states” e “red states” nos EUA, entre “remainers” e “leavers” no Reino Unido, entre quem se sente à vontade com a globalização e os que desejam regressar ao nacionalismo, e penso: cá estão os nossos guelfos e gibelinos. Os guelfos do nosso tempo são representados pelo arquipélago de cidades globais que de Londres a Nova Iorque e a Istambul, votaram contra Trump, o “Brexit”, e o referendo presidencialista de Erdogan. Os gibelinos reagem ao descaso e à desconsideração — a que consideram serem votados pelos guelfos — votando por sua vez em homens fortes para sacudir o sistema.

Como é que isto acaba? Não sei. É isso que torna as coisas interessantes — e difíceis de meter numa só crónica.

O autor escreve segundo do novo Acordo Ortográfico 

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