Música para ver a dois com os The Blaze

Neles a cultura visual é indissociável da música, assinando tanto a composição dos temas como a feitura dos magníficos videoclipes que mais parecem curtas-metragens tocadas por um humanismo desconcertante. Os franceses The Blaze acabam de lançar o álbum Dancehall.

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Um dos grandes admiradores da dupla francesa Blaze é o cineasta americano Barry Jenkins, realizador de filmes como o oscarizado Moonlight (2016) ou Medicine For Melancholy (2008). Ao que parece tudo terá acontecido quando acedeu ao videoclipe da canção Territory, através do Twitter do cineasta francês Romain Gravas, que é simultaneamente um dos realizadores de vídeos musicais mais reconhecidos dos últimos anos (M.I.A., Justice, Jamie xx, Kanye West).

Em declarações recentes ao New York Times, Barry Jenkins confessava que havia tido toda uma experiência com o vídeo, enaltecendo o seu universo e o movimento coreográfico da câmara, acabando por vê-lo posteriormente mais de 100 vezes. Não foi o único. O ano passado no festival de Criatividade de Cannes, o principal evento internacional da indústria de comunicação e marketing, perante a surpresa geral, o júri resolveu entregar-lhes um dos mais importantes galardões do certame, pelo mesmo videoclipe. Quer dizer, chamar-lhe videoclipe parece pouco.

Os quatro videoclipes até agora realizados pela dupla parecem-se mais com microfilmes. No caso de Territory somos transportados para a Argélia, um homem regressa a casa, ao seio familiar, aos amigos, com pessoas de varias gerações abraçando-se. Nem sempre é claro o que os move, mas fica-se totalmente imerso naquele ambiente, numa celebração emocional de laços e afectos, aberta às mais diversas interpretações, misto de virilidade e vulnerabilidade masculina, tocada por um contagiante perfume a liberdade. Algo que está sempre presente nas histórias do duo, que nos restituem personagens que é muito raro ver em videoclipes.

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Imagens do videoclipe Territory; os Blaze são os primos Guillaume, 35 anos, e Jonathan Alric, de 29 anos
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Em Abril do ano passado quando escrevemos sobre o seu EP de estreia, destacávamos precisamente os dois videoclipes (Virile e Territory) pelos quais ficaram conhecidos na fase inicial do seu percurso, chamando a atenção para o facto de neles a cultura visual ser indissociável da música, assinando tanto a composição dos temas como a feitura dos seus vídeos.

E agora eis que lançam o seu primeiro álbum, Dancehall, já depois de terem pisado alguns dos mais sonantes palcos de festivais por esse mundo fora, do Coachella nos Estados Unidos a Paredes de Coura, em Agosto passado. Como seria de esperar, tanto os vídeos que se seguiram (realizaram mais três), como as canções que foram compondo acabam por pegar nas linhas desenvolvidas inicialmente. É uma sonoridade electrónica física a que propõem, mas em vez de dança eufórica para multidões, o que temos é poesia, humanismo, sensibilidade à flor da pele.

Eles dizem que é música para dançar a dois. Faz sentido. É uma sonoridade electrónica emocional a que propõem, feita de dinâmicas rítmicas próximas do house, de espirais hipnóticas, de vozes alteradas digitalmente e elementos atmosféricos. Existe qualquer coisa de introspectivo nas suas canções mas também de épico, maior do que a vida, exactamente como nos vídeos. Quem procura movimentos exploratórios não será aqui que os encontrará. O que existe é a definição de um espaço sonoro e visual com identidade precisa que consegue gerar uma comunicação estimulante.

Os Blaze são os primos Guillaume Alric, 35 anos, e Jonathan Alric, de 29 anos. O primeiro cresceu em Dijon, tendo estudado fotografia, antes de começar a fazer música como Maybe Hubb, inspirado por alguns dos mestres do género como Lee Perry, King Tubby ou Mad Professor. O segundo cresceu na Normandia, mas também andou pela Costa do Marfim e Peru. Os dois não eram muito próximos até que Jonathan, que estava numa escola de cinema, necessitou de música para um dos seus projectos fílmicos como estudante e solicitou a ajuda de Guillaume. Foi aí que perceberam que partilhavam muitas afinidades musicais e visuais.

Isso foi há cerca de sete anos. Desde o início que tanto se interessaram pela música como pelas imagens, apostando em criar histórias. Para a feitura do primeiro vídeo, Virile, tinham um orçamento irrisório, mas isso não os impediu de criar uma obra tocante, filmando dois amigos num apartamento. No vídeo vemos dois homens a fumar, a dançar e a cantar, numa interacção indefinível, sem que se perceba exactamente se são amigos ou amantes, numa totalidade onde mais uma vez vemos inscrita essa dualidade entre fragilidade e masculinidade. O conceito é simples, o efeito dilacerante, sendo ao mesmo tempo privado, poderoso e realista.

A dupla costuma citar como inspiração visual realizadores como o britânico Ken Loach, os belgas irmãos Dardenne, o mexicano Alfonso Cuáron, o americano Terrence Malick ou o fotógrafo brasileiro Sebastião Salgado. Faz sentido. Tanto a música, como os vídeos, contêm uma dose de realismo, humanismo e sentido épico. Estão longe de constituir o típico projecto conectado com as músicas de dança, apesar de ser tentador associá-los a outras duplas gaulesas, como os Daft Punk ou os Justice.

O presente álbum foi composto e gravado em Paris – onde agora habitam – e no campo, Sul de França, em casa do avô, de 98 anos, porque segundo eles queriam criar algum contraste entre o meio urbano e a vida no campo. E isso sente-se, mais uma vez, tanto na música como no universo visual. Veja-se Heaven, uma espécie de alegoria do paraíso, brancos, negros ou árabes em comunhão, respirando a mesma natureza, misto de contemplação e energia radiante.

Mais dramático é o último videoclipe, que realizaram para a canção Queens, evocação da relação entre duas jovens pertencentes a uma comunidade cigana, sem que se perceba mais uma vez se são amigas, irmãs ou até amantes, mas não interessa, porque o que prende é a forma tão visceral quanto sentimental com que tudo nos é devolvido, como se Larry Clark ou Harmony Korine tivessem evacuado os seus personagens adolescentes problemáticos para um filme de Malick.   

Essa confluência de universos entre música e imagem tem chamado a atenção sobre a sua actividade. Mas as vozes mais conservadoras quando os querem criticar também o fazem com alguma facilidade. A partir da música, argumenta-se que a mesma não sobrevive sem imagens. Da fonte cinematográfica alega-se que os seus pequenos filmes estão demasiado dependentes de uma lógica musical. Para nós estão óptimos assim, fazendo canções cinematográficas, ou microfilmes a partir de canções, conseguindo com música e imagens destacar o que nos conecta, ao mesmo tempo que transmitem o que transcende e está muitas vezes para além de nós.

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