“Não há unidades na PJ que não tenham necessidade de pessoas”

Entrevista ao procurador Batista Romão, que liderou na última década a maior unidade territorial da PJ, a do Norte. No balanço fala do envelhecimento dos operacionais e de porque a falta de pessoas pode comprometer a passagem de conhecimento às novas gerações.

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Batista Romão garante que articulação entre as polícias melhorou muito Adriano Miranda

Segunda parte da entrevista: “Na Justiça hoje ninguém está acima da lei”

O procurador João Batista Romão, 59 anos, passou os últimos dez a liderar a maior unidade territorial da PJ, a do Norte, que abrange 3,7 milhões de habitantes. Deixou esta semana a instituição, e no balanço fala da falta de meios na PJ e na melhor articulação com outras polícias.

A falta de meios é uma queixa recorrente na PJ. Quais são as principais dificuldades?
A PJ precisa de muitos meios. Precisa de investigadores e de segurança: saio com metade dos seguranças que tinha no início, que são importantes para a segurança de quem aqui trabalha e do edifício. Precisamos de mais peritos contabilísticos ou financeiros: temos as mesmas pessoas que quando cheguei. Precisamos de um reforço nas diversas valências. Precisamos de uma frota automóvel melhor. Temos carros bons, mas temos alguns com mais de 400 mil quilómetros. Precisamos de um reforço muito significativo em áreas de apoio à investigação criminal. Por outro lado precisamos de investigadores motivados e preparados. Os que temos não chegam. E faixa etária está a avançar.

Concorda com o novo director nacional que considera a falta de operacionais e o seu envelhecimento dos problemas mais prementes?
Concordo. A PJ para ser a polícia prestigiada que é não pode trabalhar sem meios. O poder político tem que pensar em reforçá-los. Houve um avanço muito positivo no crime económico. Há hoje uma colaboração muito mais estreita entre o Ministério Público e a PJ, mas isso não basta. Por exemplo, na área das câmaras municipais é preciso conhecer mecanismos de funcionamento administrativo muito específicos. Pedimos apoio externo, mas devíamos ter gente especializada nesta área.

Neste momento qual é a criminalidade que o preocupa mais?
Tivemos três períodos nestes dez anos. Um entre 2008 e 2012 de intenso combate à criminalidade organizada, ao desmantelamento de gangs: só em 2009 desmantelamos 20. Tivemos crimes de roubo, explosões em ATM, ataques a carrinhas de valores, carjackings, furtos a ourives. Nunca descuramos outros sectores, mas tivemos um grande esforço para a reduzir as pendências no crime violento. Foi dos anos com um maior número de detidos na directoria do Norte. E um número significativo ficou em prisão preventiva. Foram anos muito complicados. Entre 2012 e 2015 viramo-nos muito para as fraudes: na Segurança Social, nas farmácias e no ouro. Tivemos grandes operações nessa área. E precisámos de reforçar a área económica, numa altura em que o crime violento tinha baixado na ordem dos 60%. E o último período, até agora, em que dentro da criminalidade económica – e mantendo os níveis de resposta nas outras áreas – trabalhamos mais na área da corrupção. As operações começaram a ser visíveis. As pessoas estão motivadas.

Há algum motivo para essa visibilidade?
As denúncias aumentaram. E como não era preciso um reforço tão elevado no crime violento, enquadramos outros funcionários nesta área. Internamente alocámos mais meios. Isso cria mais disponibilidade e além disso escolhemos as pessoas certas. Estamos sempre a fazer ajustamentos de acordo com os resultados.

Admite que existem problemas de articulação entre as várias polícias?
Em todo o país e em todos os países. Defendo que deve haver um corpo de polícia como a GNR, que tem funções, em dadas circunstâncias, diferenciadas da polícia civil. Como cidadão e, não como magistrado, tenho aversão às coisas únicas. O facto de existir mais que uma polícia é bom. Há sempre a possibilidade de uns se investigarem aos outros. Não vejo que as experiências contrárias no estrangeiro tenham acabado com os problemas.

Mas podia melhorar-se a articulação?
Tem-se feito bastante. Conseguimos hoje, no âmbito do trabalho da secretária-geral de segurança interna, sentarmos os topos das hierarquias das várias polícias à mesa. Quando há boa vontade conseguimos chegar a bom termo. É preciso que cada um saiba as suas funções. A PJ não tem que se meter nas questões da segurança. Não lhe diz respeito. Isso é para a PSP e para a GNR, que tem uma vertente de prevenção criminal muito mais acentuada. A PJ é uma polícia de investigação criminal.

Por vezes é preciso que as polícias transmitam informações à PJ, o que nem sempre acontece.
Só se pode compreender isso numa lógica de afirmar as capelinhas. Isso não passa pelos responsáveis máximos da PSP e da GNR. Temos de identificar onde está o problema e comunicá-lo a quem tem o poder de intervenção, desde o Ministério Público à senhora secretária-geral de segurança interna. Não podemos andar em guerras permanentes uns com os outros. Não adianta. No Norte, quando cheguei, houve muitos desses problemas. Hoje contam-se pelos dedos. Isso tem também a ver com o relacionamento das hierarquias, que têm o poder disciplinar, mas também o poder de chamar a atenção às pessoas. São capazes de funcionar mais rapidamente na GNR que tem uma estrutura militarizada, mas não deixa de funcionar na PSP. Apesar de ter vestido a camisola da PJ, na forma de estar sempre mantive a qualidade de magistrado norteando-me por princípios como a legalidade e a objectividade.

Do ponto de vista prático qual é a diferença?
As pessoas sabem que não estou a defender a minha capelinha. Estou numa comissão de serviço. Vou-me embora. Este não é o meu clube. Tenho o limite de mandatos e vou regressar à magistratura. Mas nunca me podem criticar de não ter defendido a PJ e esta unidade territorial com unhas e dentes externamente. Nem que dentro criticasse. Temos a competência disciplinar e o dever de instaurar procedimentos disciplinares quando as coisas não correm bem. Mas não era essa a minha via. Esse é um elemento acessório de gestão. A minha via foi sempre captar um dado número de pessoas que queria dignificar esta unidade. Isso foi conseguido. Mostra-se pelos resultados durante anos consecutivos quer na baixa de pendências, quer no número de detidos, quer no número de grupos desmantelados.

Faz sentido que o actual e o anterior director nacional sejam operacionais da casa ou preferia magistrados?
Não tenho uma posição fundamentalista. Com algum bom senso, o legislador permitiu o acesso a investigadores. Há certos momentos históricos em que se pode justificar ter um polícia à frente da PJ. No entanto, tendencialmente, face à história da polícia, entendo que um magistrado do alto da pirâmide devia ser o director.

Como avalia o papel da PJ ao longo desta década?
De uma maneira global, teve um papel muito positivo. Houve muitos problemas internos – houve greves, insatisfação da troika, contestação a dirigentes, inclusive a mim. Mas isso não invalida que a PJ seja das instituições mais estimadas da população portuguesa.

Falou na contestação contra si. Porque teve uma relação tensa com a Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal?
Isso aconteceu num período limitado. Durante o meu primeiro mandato. Havia uma tensão adquirida em relação aos dirigentes da polícia. Essa tensão tentou ser esbatida com a nomeação do dr. Almeida Rodrigues [o primeiro polícia de carreira a liderar a PJ], que estimou muito os magistrados. Independente de divergência que tivemos, e de ter querido bater com a porta. Ele segurou-me sempre. Foi uma pessoa sempre correcta e muito leal. Não se imiscuiu. E depois as coisas esbateram-se por elas próprias. Há aqui gente com muita valia, que sempre soube distinguir o interesse da polícia. Mesmo estando à frente de manifestações.

Em que campos é que a Judiciária tem espaço para melhorar?
Na área da corrupção. Nas unidades territoriais também poderá melhorar na área da criminalidade informática, que precisa de mais apoio, mais gente com uma qualificação permanente. Preocupa-me muito o desgaste etário que temos. Naquilo que dominamos claramente, como as intervenções na grande criminalidade, precisamos de passar o conhecimento a gerações mais jovens. Mas temos que ter os meios necessários para garantir todo o outro serviço. Isto tem que ser feito calmamente. Mas são precisas pessoas.

Esse passar de testemunho pode estar em causa devido à falta de pessoas?
Se se prolongar a situação que vivi, pode. Daqui a poucos anos. Vivi sempre no tempo das vacas magras. O risco existe se for sucessivamente adiada a confrontação destes problemas. Não há unidade nenhuma que não tenha necessidade de pessoas. Obviamente que os meios económicos do Estado são escassos. Não podemos estar a pedir o mundo e a lua. Mas temos que garantir que todos os anos temos uma renovação de quadros. Para repormos os que temos perdido. E nestes dez anos perdemos mesmo muita gente.

Sabe quantificar?
No Norte umas largas dezenas de pessoas. Tinha a mania de dizer que quando não caçamos com cão, caçamos com gato ou com rato. Mas chega a um ponto que dizemos: o rato é pequenino. Não chega.

A PJ vai entrar numa nova fase, com outra direcção nacional e com novas chefias em muitas das unidades. Como vê o futuro?
Espero o melhor possível. Trabalhei com o actual director nacional. Mas para dar o salto é preciso meios e isso não depende da nova direcção. Depende do Governo, do Ministério das Finanças, de se libertarem meios económicos para a polícia. Tenho uma excelente relação com as pessoas. Foram escolhidas. Temos que respeitar. São pessoas válidas que deram provas. Mas não posso fazer prognósticos.

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