Dez anos de crise: o tempo dos guelfos e gibelinos (I)

Quando grande parte das nossas polémicas e controvérsias estiverem esquecidas, quando já ninguém se lembrar de palavras como "Brexit" ou trumpismo, alguém no futuro vai olhar para o nosso tempo como nós hoje olhamos para os guelfos e gibelinos.

Há dezenas de livros sobre a crise financeira de 2008 e a sua afilhada, a crise do euro de 2010-11. Desde os que foram escritos em cima da hora, como os de Stiglitz, Krugman, ou Michael Lewis, até às memórias de políticos e banqueiros centrais, como Timothy Geithner, a meio do caminho, e já aos livros que agora começam a sair para comemorar os dez anos da crise — comecei a ler, e já recomendo, Crashed, de Adam Tooze.

O problema é que, na verdade, esses livros diferem pouco uns dos outros. Autores que assumimos terem políticas diferentes, ou estilos de pensar muito diversos, convergem numa coisa: as causas da crise são a desregulação e a desigualdade, e o nexo entre ambas, que é a dívida. Com mais ênfase dado a um elemento ou a outro, as interpretações não variam muito porque não têm muito por onde variar. Nós sabemos porque ocorreu esta crise: porque a finança estava desregulada. Sabemos porque ela foi tão dura: porque as sociedades industrializadas foram ficando cada vez mais desiguais. E sabemos porque ela foi tão intratável: porque credores e devedores estavam unidos por laços cada vez mais insustentáveis de dívidas impossíveis de pagar. Pode haver divergências sobre se foi feito muito ou pouco para evitar uma crise num futuro próximo (pouco, na opinião geral) mas há pouca divergência sobre a crise do passado recente.

De forma que o livro mais interessante que li sobre a crise foi escrito antes da crise: chama-se The Long Boom e foi publicado em 1999 por três autores: Peter Schwarz, Peter Leyden e Joel Hyatt. E a razão por que este livro explica muito bem a crise é porque está incrivelmente errado. Nada pode explicar tão bem uma crise como a mentalidade dominante no momento imediatamente anterior à crise. The Long Boom é um exemplo magnífico de como se pode estar tão confiante no erro antes do mundo nos refutar com estrondo.

Basicamente, o argumento do The Long Boom (não encontrei nenhuma edição em língua portuguesa) é que, em 1999, quando o livro saiu, a humanidade se encontrava a meio de um período de expansão e crescimento como nunca acontecera na história. Esse período começara nos anos 1980 e iria persistir sem alteração até 2020. No argumento dos autores, faltariam agora dois anos para se provar que eles teriam razão. Na verdade, o que eles não previram foi que os ataques do 11 de setembro de 2001 iriam lançar o mundo numa década de “Guerra contra o Terror” e “Choque de Civilizações”, a que se sucederia um quase-colapso do sistema financeiro norte-americano em 2008 e uma crise dilacerante na zona euro e na União Europeia que nos trouxe quase até aos dias de hoje.

Num artigo anterior que deu origem ao livro, e que li na revista Wired em 1997, os autores iam ainda mais longe: com a invenção da internet iniciava-se uma fase de crescimento económico permanente. Iriam acabar os ciclos de expansão e contração. E a entrada de grandes partes do mundo no sistema económico global iria estabilizar as suas políticas e trazer paz ao mundo. No livro há um tema recorrente de cada vez que se fala de um país ou de uma região do globo: “a América Latina começou a privatizar e a desregular e com isso vai libertar o potencial da sua economia”. O mesmo se diz da Europa, da Ásia, da Rússia e até da Turquia (a única crise geopolítica que o livro prevê, no Mar Cáspio, será resolvida por uma Turquia construtiva e internacionalista!). Este livro ajuda-nos a relembrar como o neoliberalismo não foi uma caricatura: ele existiu mesmo, e a sua visão do mundo é que era em larga medida caricatural.

Ler The Long Boom ajuda-nos a perceber como o pensamento da época pré-crise estava impregnado de um viés otimista. Os autores queriam fazer-nos crer que “desta vez é diferente”, e não há frase que deva alarmar mais quem tenha um bocadinho de sensibilidade histórica do que essa. Por outro lado, o facto de esse viés otimista estar tão errado antes levou agora o pensamento dominante a enveredar por um movimento de hipercorreção. Hoje, se não se queria ser intelectualmente isolado, é preciso estar tão pessimista quanto em 1999 era preciso estar otimista. Nenhuma das situações é boa para um debate fidedigno sobre o ponto da história em que estamos. Dez anos após a crise financeira, ela é agora sobretudo sociocultural. E aí as pessoas que têm uma grande facilidade em ler um gráfico e com ele pretender explicar a realidade passam a ter uma dificuldade muito grande em lidar com elementos tão subjetivos como os da identidade e do preconceito, da pertença e do ressentimento ou, por último, da enorme diferença geracional que temos hoje na maneira de olhar o mundo.

Quando grande parte das nossas polémicas e controvérsias estiverem esquecidas, quando já ninguém se lembrar de palavras como "Brexit" ou trumpismo, alguém no futuro vai olhar para o nosso tempo como nós hoje olhamos para os guelfos e gibelinos. E quem eram os guelfos e os gibelinos, perguntam vocês? Excelente questão. Dedicarei a ela a próxima crónica.

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