O Largo do Rato não deve ter "monos"

Custa ler “o Mono do Rato” nas notícias por ser deselegante? O que dizer então da proposta assinada pelos arquitectos e que é vista por tantos lisboetas como um insulto à cidade que teimam em defender?

Declaração de interesses. Vou falar sobre uma amiga, Lisboa. Há anos que alguns a tratam como se fosse uma cidade qualquer, sem nada que valha mesmo a pena salvaguardar e defender, à excepção dos dois monumentos UNESCO. Sem ponta por onde se pegue, habitada por alguns milhares, vários deles, absolutamente ancorados no passado.

E ninguém gosta de ver uma amiga, com os louros de Lisboa, a ser tratada dessa forma. Desculpar-me-á Bárbara Reis por ter começado este texto usurpando as frases inicias do seu artigo de opinião de 31 de Agosto deste ano em que defendia o prédio projectado para o Largo do Rato a que o Zé-Povinho, na sua natural sensatez e perspicácia, resolveu, e bem, dar a alcunha de "Mono do Rato".

O mono é o prédio, não é o amigo Aires Mateus, o Manel. Custa ouvir dizer “Mono do Rato”? Custará mais a muitos lisboetas se ele for construído, desferindo o golpe de misericórdia num largo que já sofreu décadas de maus-tratos, não obstante a presença de um grande convento, de um palácio, de um quarteirão de casas de rendimento do século XIX e de um chafariz, Monumento Nacional.

Custa ler “o Mono do Rato” nas notícias por ser deselegante? O que dizer então da proposta assinada pelos arquitectos, Manuel Aires Mateus e Frederico Valsassina, e que é vista por tantos lisboetas como um insulto à cidade que teimam em defender?

Já sabemos que em questões de gostos, ou da falta deles, se entra pelo mundo das subjectividades. Ora, é precisamente para dar alguma segurança objectiva quando se trata de decidir operações urbanísticas na cidade que os executivos camarários se dotam de instrumentos, conhecidos como Planos Directores Municipais, Planos de Pormenor e de Salvaguarda, definição de áreas de interesse histórico, etc. Balizas que serviriam para definir o que deve e pode ser, ou não, concretizado.

Os municípios fazem-no e o Estado também. Por essa razão, existe uma Direcção-Geral e uma Lei de Bases do Património. Aparentemente, tudo coisas despiciendas no entender de Bárbara Reis.

A autora acha que o facto de o projecto, de acordo com o Ministério Público (MP), violar vários artigos do PDM e da Lei de Bases é um detalhe de somenos importância. Bárbara Reis desvaloriza em absoluto o papel do MP, deixando no ar a tese de que se nada de arquitectura esse órgão sabe, por que razão se atreveu a opinar sobre a estética e volumetria do bacamarte (o prédio, não o Manel) projectado para o Rato? Vai até mais longe, afirmando que o MP seria mesmo quixotesco porque teve o topete de se pronunciar sobre direitos difusos – e o que são direitos difusos?

Nada deselegante, como se vê, uma pérola de ironia, lá isso é verdade. Desancar o MP quando intervém no pleno cumprimento das suas funções já é legítimo e até aplaudível. Ver no projecto de um amigo uma obra em nenhum ângulo enquadrável naquele espaço é emitir opiniões e adoptar decisões avulsas e trauliteiras.

Pode, contudo, ler-se no site do MP o seguinte: “O MP representa o Estado (…) quando estão em causa interesses patrimoniais ou não patrimoniais que se identificam com os interesses da comunidade e com o interesse público (...), ambiente, urbanismo, património cultural.”

Penso que está justificada a actuação do MP e que aqui não há quixotesco que nos valha. Defender o que fere vários artigos do PDM, o que interfere com a Zona Especial de Protecção do Chafariz do Rato, Monumento Nacional, isso sim é que é incompreensível.

Zonas essas cujo objectivo, de acordo com a DGPC, é, justamente, assegurar o enquadramento arquitectónico, paisagístico e a integração urbana, bem como as perspectivas de contemplação. Com o "Mono do Rato" tudo isso cairá por terra.

Estamos mais uma vez perante a arbitrariedade com que a CML e a DGPC agem nestes casos. Das perguntas feitas por vários órgãos da imprensa, e que ficaram sem resposta, ao desrespeito de prazos definidos pela própria autarquia para que a validade do que autorizou se continue a verificar, os tristes episódios e respectivas trapalhadas sucedem-se. Basta para isso ler o excelente artigo de Margarida Saavedra sobre todo este processo. Transparência, responsabilização, prestação de contas, nada disso aconteceu e nada disso parece incomodar Bárbara Reis. Não toquem é na obra do meu amigo, isso não tolero nem aguento.

Por fim, é evidente que a cobertura em lioz de um mono daquele calibre não faz dele necessariamente um bom projecto, não se preserva a integridade do sítio porque a linguagem e volumetria escolhidas pela dupla de arquitectos não o permite. Optaram por um programa intrusivo e, como tal, não harmonioso com a envolvente. As fotografias não exageram o que para ali se prepara.

E, já agora, o “Todos Contra o Mono do Rato” não são uns bota-de-elástico que preferiam que na cidade circulassem carroças com burros a puxar. Não é, também, verdade que os portugueses estejam com nostalgias serôdias. É sempre espantoso ver que o suposto cosmopolitismo de uns poucos passa a defesa de coutadas, quando muitos se atrevem a contestar a culta e vanguardista opinião. Estala o verniz barato de um alegado “ter mundo” quando, na verdade, se é paroquial. Muitos lisboetas não gostam do projecto e estão nesse direito. Para informação da autora, muitos desses seres retrógrados até gostam, pasme-se, de obras contemporâneas, por exemplo, a estupenda recuperação do Teatro Thalia, a urbanização de Braço de Prata, a torre da Fontes Pereira de Melo, as obras de Zaha Hadid em vários pontos do globo, o Maat junto ao Tejo, o Caixa Fórum em Madrid e tantos outros.

Em relação ao que foi dito no artigo sobre a sinagoga e sobre a comunidade judaica, penso que o assunto já foi brilhantemente respondido por Esther Mucznik.

O "Mono do Rato" (e não o Manel) não deve ser construído porque o seu impacto vai muito para além do próprio Largo do Rato. É sintomático de uma atitude permissiva que acha que a cidade, em vez de ser olhada, pensada na sua globalidade, pode ser extirpada na sua unidade urbana por obras de arquitectos que pensam na esquina onde querem construir as suas peças, em vez de as verem no contexto envolvente. Ordenamento urbano por oposição à cegueira autoral.

Concluindo, parece-me que a única coisa verdadeiramente quixotesca em toda esta novela é estar-se a aplaudir de pé o que deveria merecer a maior das pateadas.

Sugerir correcção
Ler 11 comentários