A procuradora-geral da República, o essencial e o acessório

É excessivo reduzir a nossa esperança sobre o futuro da Justiça no combate à corrupção à recondução ou não recondução da procuradora-geral da República.

A renovação (ou não) do mandato da actual procuradora-geral da República tornou-se um tema central da política portuguesa. Anda meio mundo a adivinhar se o Governo propõe a renovação do mandato e se o Presidente da República nomeia ou não nomeia. Enquanto o PS — compreensivelmente — pergunta qual é a pressa, os outros partidos acotovelam-se na fila das declarações de apoio a Joana Marques Vidal.

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A renovação (ou não) do mandato da actual procuradora-geral da República tornou-se um tema central da política portuguesa. Anda meio mundo a adivinhar se o Governo propõe a renovação do mandato e se o Presidente da República nomeia ou não nomeia. Enquanto o PS — compreensivelmente — pergunta qual é a pressa, os outros partidos acotovelam-se na fila das declarações de apoio a Joana Marques Vidal.

Concedo que o assunto tem importância. Não é indiferente saber quem vai dirigir o Ministério Público, numa fase em que dá provas de mais efectividade e objectividade no exercício da acção penal, com casos relevantíssimos em investigação. Mas daí até se dizer, com excessivo simplismo, que apoiar a permanência da procuradora-geral da República é ser contra a corrupção e contestá-la é ser a favor, vai ainda uma grande distância. A questão, posta assim dessa forma dramática e fulanizada, está mal colocada e não permite ponderar com serenidade todas as suas variáveis.

O Ministério Público tem um estatuto que permite aos magistrados actuar com desligamento de todos os interesses políticos, económicos e sociais. Tem mecanismos de controlo que garantem um equilíbrio razoável entre a estrutura hierarquizada em pirâmide e a autonomia técnica e de consciência de cada magistrado. Tem magistrados com excelente formação profissional e muita experiência em investigações complexas. Tem uma cultura de descentralização e autonomia dos diversos departamentos que impede a concentração do processo de decisão no topo da hierarquia. Por isso, sem prejuízo da importância da liderança do MP, é excessivo reduzir a nossa esperança sobre o futuro da Justiça no combate à corrupção à recondução ou não recondução da procuradora-geral da República.

Dito isto, não há a mínima dúvida de que a actual procuradora-geral cumpriu a sua missão com assinalável êxito e que merece todos os elogios públicos que lhe têm sido dirigidos. Falou pouco e bem. O procurador-geral da República todos os dias nas televisões a comentar este caso e aquele não dá confiança, nem acrescenta credibilidade. Deu sinais de ser impermeável a influências indevidas. A melhor prova disso são as investigações que correm em todos os lugares onde se levantaram suspeitas, sem olhar a quem. Não se deixou paralisar na tradicional retórica da falta de meios. É claro que os meios são poucos. Mas a chave do sucesso é fazer muito com pouco. E isso parece ter sido conseguido.

Não vou aqui dar palpites sobre se a actual procuradora-geral da República deve ou não continuar nem sobre como o Governo e o Presidente da República devem exercer as suas competências. Limito-me a dizer, isso sim, que prefiro, em tese geral, um procurador-geral da República com a qualidade de magistrado do MP, oriundo dos tribunais e dos processos e não das comissões de serviço de confiança política. Isso assegura melhor uma cultura de respeito pela autonomia de cada magistrado em cada processo e um maior conhecimento da instituição, essencial para gerir e motivar 1700 procuradores.

O sindicato que representa os magistrados do MP tem dito que prefere uma solução de substituição, por entender mais adequado que os mandatos não sejam renovados. Não está sozinho. A Comissão de Veneza, que é o órgão consultivo do Conselho da Europa para as questões constitucionais, produziu em 2011 um documento — Padrões Europeus sobre a Independência Judicial — em que defende expressamente a vantagem de os procuradores-gerais nomeados pelos governos ou parlamentos não poderem ser reconduzidos num segundo mandato, dado o risco de se poderem comportar de maneira a agradarem a quem os pode renomear, ou de serem vistos como tal. Este factor tem estado um pouco fora do debate público, mas é relevante e não pode deixar de ser considerado na decisão.

A excessiva focalização do problema na pessoa da actual procuradora-geral é boa para distrair a nossa atenção do essencial. Tão ou mais importante do que saber o nome do próximo procurador-geral, é saber se não anda por aí um projecto político de alteração do Estatuto do MP para aumentar os factores de controlo político. Se não anda por aí o sonho de replicar em Portugal as soluções populistas e antidemocráticas da Hungria e da Polónia, entrando pela autonomia do Ministério Público dentro e controlando politicamente a sua acção. Isso sim é que é perigoso para a saúde da nossa democracia.