Quando a medicina sai da faculdade para levar saúde a zonas carenciadas

A 7.ª edição do projecto Medicina Vai levou mais de 50 estudantes da Universidade do Porto a Sesimbra. Fizeram rastreios, acções de educação sexual, actividades com idosos para promover o envelhecimento activo e com crianças para lhes tirar o medo dos hospitais.

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O único som que se ouve é o burburinho da televisão ao fundo da sala, para onde quase todos olham. O cenário pouco muda quando entra na sala de convívio do Centro de Apoio Sociocultural Unidade Zambujalense (Cascuz) um grupo de estudantes de Faculdade de Medicina da Universidade do Porto (FMUP). Vêm dispostos a conquistar as atenções das quase três dezenas de utentes do lar e centro de dia. Começam por puxar conversa. E ao fim de duas horas quase todos estão a dançar.

É por causa de momentos como este que, às vezes, é preciso sair da Faculdade de Medicina para saber porque se anda lá. É o que diz Ana Reis, estudante do 3º. ano, na quarta-feira em que o PÚBLICO acompanhou o segundo de cinco dias do Medicina Vai, o projecto que a associação de estudantes da FMUP organiza junto de populações com acesso carenciado aos cuidados de saúde. Nesta 7.ª edição, foram mais de 50 os estudantes que passaram a última semana de férias em Sesimbra, com actividades de envelhecimento activo, rastreios e acções de educação sexual e reprodutiva em dez Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS).

A manhã começa no Cascuz. É num dos edifícios da IPSS do Zambujal – a segunda maior do município – que uma dezena de estudantes fala à vez com cada um dos utentes. Têm que puxar por eles – por uns mais do que outros – para lhes conhecer as histórias, os gostos, os hábitos. “É preciso sairmos da nossa zona de conforto, encontrar pontos de interesse, improvisar”, diz Mariana Miranda, agora estudante do 2.º ano. Nas aulas ainda ninguém lhe ensinou a falar assim.

Inês Castro, aluna do 4.º ano, baixa-se para estar ao nível dos olhos de Cremilde. São claros – "bonitos", diz Inês – e ao elogio da estudante abrem-se ainda mais. “Isto é uma alegria”, repete a mulher de 88 anos, neste lar há cinco, entre as conversas sobre o tempo, as netas e as sessões de ginástica. Falam mais do presente do que do passado. E Inês quer saber o que fazem durante o dia – Cremilde e uma amiga apontam para o aparelho na ponta da sala. Quando se queixam da falta de sal na comida, a futura médica propõe-lhes ver a questão como um copo meio cheio: “Tem menos sabor, mas faz melhor”. “E caminhadas, fazem?”

Benvinda é que já não anda como gostaria. Os ossos de quem passou grande parte da vida a cavar na terra e a viajar entre três continentes “estão areados agora”. Vale-lhe “a conversa, os desenhos e um bom jogo de cartas” – e nem precisa de terminar a frase para que Leonor Francisco, estudante do 2.º ano, puxe um baralho para a mão. “Quer-me ensinar aquele jogo que joga com o seu neto?”

Maus hábitos alimentares

O objectivo desta sessão é promover práticas saudáveis entre os mais velhos, combatendo o sedentarismo e estimulando a correcção de maus hábitos alimentares. E para isso os estudantes usam as técnicas que podem. A reacção à música, já ao final da manhã, é uma surpresa. Afinal os jogos com grupos de idosos – que incluem pessoas com diferentes capacidades cognitivas e de mobilidade – são sempre um risco, repara Mariana Oliveira, uma das organizadoras. Por isso, é para júbilo dos estudantes que quase toda a sala se junta ao “comboínho”.

Em moldes semelhantes, o projecto “Aldeia Feliz” leva, há cinco anos, estudantes da Universidade do Minho a visitar idosos em aldeias isoladas no interior do país. Também a Faculdade de Medicina de Lisboa organiza o Medicina Mais Perto, em duas frentes: nas ilhas dos Açores e da Madeira e em Matola, em Moçambique.

Médicos de batas coloridas, aos corações

As três freguesias de Sesimbra espelham um acesso desigual a cuidados de saúde. As freguesias da Quinta do Conde e Santiago (onde fica a vila de Sesimbra) contrastam com a do Castelo pela “quantidade de pessoas sem acesso a médico de família” e falta de atendimento permanente, descreve Guilhermina Ruivo, técnica superior de acção social da autarquia. Só é comum a todo o concelho a falta de urgência ao fim-de-semana. A solução mais próxima é o hospital de Setúbal.

É para este tipo de carências que a organização do Medicina Vai olha na hora de escolher o destino do projecto. E a este concelho também importa colher o interesse dos futuros médicos. 

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Ao fim da manhã, o átrio do infantário do Centro Paroquial do Castelo de Sesimbra está transformado num “Hospital dos Pequeninos”. Ali os “médicos” têm batas coloridas, aos corações, e as crianças dão vacinas, põem ligaduras, pensos e usam máscaras. Há mesmo um pequeno “cirurgião” com uma capa aos ombros a correr por um hospital montado para tirar às crianças o medo de ir ao médico. “Agora o Diogo quando for a uma consulta a sério vai-se lembrar disto”, espera Esperança Marques, auxiliar no jardim-de-infância.

À tarde, as conversas ficam mais sérias. Com crianças entre os quatro e os seis anos, os estudantes desconstroem a ideia que há papéis naturalmente atribuídos a homens e a mulheres. Nos dias seguintes, as questões adequam-se às idades. Com os mais velhos, abordam outros estereótipos de género, desfazem mitos sobre menstruação e gravidez, e problematizam a violência no namoro.

“É muito importante como estudantes sermos colocados em situações desafiantes. Como fazemos para que os mais tímidos participem? Temos que criar confiança, quebrar o gelo”, explica Inês Ferreira, estudante de 21 anos. Voluntária pela segunda vez e agora membro da organização quis desenvolver soft skills que não ganha nas aulas. Liderança de equipas e cooperação, por exemplo. Para além de ter a oportunidade de “ver a medicina” fora dos corredores do Hospital de São João.

Lado “mais humanitário da medicina"

David Alves, aluno do 3.º ano, também veio atrás de uma experiência que lhe mostrasse o lado “mais humanitário da medicina”. Aqui vê-se a ser criança de novo para perceber como pensam os mais novos. Parece ter resultado: Serena, de quatro anos, cura rapidamente a sua doente e espera levá-la amanhã para a escola. Ao fim de meia hora, também já quer ser médica.

Ana Reis incentiva-a. Também ela ganhou com a miúda um novo ânimo. “Os primeiros anos do nosso curso são muito teóricos. Só queremos passar nos exames e chegamos a um ponto em que nos esquecemos porque estamos ali. Isto lembra-nos.”