O desencanto dos sul-africanos chamou o fantasma da reforma agrária

As expropriações de terras agrícolas dos proprietários brancos voltam a ser uma realidade no debate público na África do Sul. Hoje poucos vivem da terra, mas a sua posse continua a ser um símbolo da opressão branca.

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O sector agrícola representa hoje menos de 3% da economia sul-africana Mike Hutchings/Reuters

O programa de Tucker Carlson, um dos mais populares da FOX News, de 22 de Agosto prometia uma revelação exclusiva e o título sugeria uma realidade terrível: “África do Sul começou a confiscar terras.” A introdução feita pelo polémico apresentador era ainda mais bombástica: “O Presidente da África do Sul, Cyril Ramaphosa, começou a retirar terras aos próprios cidadãos, sem compensação, por não terem a cor de pele certa – esta é literalmente a definição de racismo.”

Entre os seus telespectadores naquela noite estava o Presidente norte-americano, Donald Trump, ávido seguidor da programação do canal conservador, cujos seis minutos de revelações parecem ter sido suficientes para o levar a pedir explicações. Horas depois do programa, Trump revelou ter pedido ao secretário de Estado, Mike Pompeo, para acompanhar as “confiscações de terras e quintas na África do Sul e o assassínio em larga escala de agricultores” – naquele que foi o seu primeiro tweet a incluir a palavra “África” desde que é Presidente.

No entanto, tudo é mais complexo do que Carlson quis fazer parecer. O debate em torno da redistribuição de terras na África do Sul é tão antigo como o fim do apartheid, em 1994, mas o processo está congelado praticamente desde essa altura. O objectivo desta política é o de reverter a desigualdade promovida durante o regime controlado pela minoria branca na África do Sul que vigorou até às primeiras eleições livres ganhas pelo Congresso Nacional Africano (ANC) de Nelson Mandela.

O domínio dos brancos sobre a terra ficou cristalizado em 1913 com uma lei que proibia os negros de adquirirem propriedades rurais. O Partido Nacional, que instaurou o apartheid, restringiu ainda mais os direitos da população negra, obrigando milhões de pessoas a ficarem confinadas a certas áreas geográficas – os chamados “bantustões”.

Com o fim do apartheid vieram as promessas de uma sociedade mais igualitária, que desfizesse os pilares que sustentaram durante décadas um regime opressor nas mãos da minoria branca. A propriedade rural era um dos aspectos mais relevantes, mas os números mostram pouca evolução em relação ao que vivia antes do derrube do apartheid.

Ainda hoje, cerca de 72% dos 37 milhões de hectares de terra agrícola sul-africana permanecem nas mãos de proprietários brancos, apesar de representarem apenas 9% da população total do país, de acordo com uma auditoria encomendada pelo Governo divulgada em Fevereiro. Um outro estudo mostra que apenas 27% das terras são propriedade de não brancos, comparado com 14% em 1994.

A lentidão em arrancar com uma reforma agrária está relacionada com o período sensível dos primeiros anos pós-apartheid. Por um lado, Mandela nunca quis alimentar um sentimento de vingança por parte dos negros em relação à minoria branca. Por outro, a recuperar de décadas de sanções económicas internacionais, a África do Sul precisava de mostrar uma face favorável ao investimento estrangeiro e, por isso, a propriedade privada deveria ser respeitada a todo o custo.

A estratégia do Governo tem sido a de nacionalizar propriedades, depois de chegar a acordo com os donos das terras sobre um preço. As terras seriam então distribuídas pelas pessoas que foram vítimas do apartheid – os negros obrigados a viver nos “bandustões” – que poderiam escolher ficar com as propriedades ou com uma indemnização. A esmagadora maioria preferiu ficar com o dinheiro e abdicou da terra e, segundo o Governo, apenas 9% das terras com valor comercial foram redistribuídas. 

Um novo Zimbabwe?

No final de 2017, o ANC aprovou uma resolução para incluir a hipótese de expropriações de terras sem direito a compensação e, pouco depois de chegar à presidência, em Fevereiro, Ramaphosa prometeu relançar o processo. Desde então, o Parlamento deu luz verde a uma moção que abre portas a uma alteração à Constituição para permitir as expropriações forçadas. Para que a emenda seja aprovada é necessária uma maioria de dois terços no Parlamento, pelo que o ANC necessitaria do apoio dos Combatentes pela Liberdade Económica, um partido marxista que se tem mostrado um dos principais críticos do antigo movimento de libertação.

A possibilidade de os proprietários poderem ser forçados a abdicar das suas terras sem direito a qualquer indemnização tem causado receio, não só junto da comunidade branca, mas também entre os investidores estrangeiros. “Os agricultores estão sem certezas e questionam se devem investir. Por que haveriam de investir se alguém irá aparecer para lhes tirar tudo?”, disse à Reuters o presidente executivo da AgriSA, Omri van Zyl, uma associação que representa proprietários agrícolas.

Os críticos das expropriações forçadas dão o exemplo do vizinho Zimbabwe, onde Robert Mugabe forçou milhares de proprietários brancos a abandonar as suas terras, muitas vezes com recurso à violência. Para além da impunidade com que vários grupos armados agiram para desalojar os proprietários, o país pagou uma pesada factura. A produção agrícola entrou em colapso, o crescimento tornou-se anémico e a moeda bateu recordes de inflação, ao mesmo tempo que milhares de pessoas emigravam precisamente para a África do Sul. Ramaphosa garante que a reforma agrária será feita de forma a não causar impactos negativos na economia ou na segurança alimentar.

Alguns analistas questionam, porém, se a reforma agrária continua a ser uma questão premente, como era no final do apartheid. John Campbell, do Council of Foreign Relations, lembra que “o número de fazendeiros brancos na África do Sul está a diminuir, embora a população branca tenha crescido 6,8% desde os censos de 2001”. Por outro lado, o país é cada vez mais urbano (dois terços da população mora em cidades) e o sector agrícola representa hoje menos de 3% da economia.

A importância dada à questão da terra parece sobretudo simbólica. “Muitas vezes, a exigência de ficar com a terra sem compensação parece estar ligada a um desejo de castigar uma injustiça histórica”, escrevia recentemente no Daily Maverick o director do Instituto para a Pobreza, Terra e Estudos Agrários, Andries du Toit.

A promessa de uma sociedade com oportunidades iguais para todos, sem olhar a raças ou origens, tal como Mandela tinha proclamado quando se tornou no primeiro Presidente democraticamente eleito da África do Sul, parece estar cada vez mais longe. O desemprego é o destino mais provável dos jovens e a desigualdade permanece em níveis gritantes, agora não por obra de uma minoria que oprimia o resto da população, mas sim por uma elite dirigente que tomou conta das instituições pós-apartheid e as tem usado em proveito próprio.

O anterior Presidente, Jacob Zuma, tornou-se na face mais visível daquilo que os sul-africanos descrevem como “captura do Estado” – a corrupção generalizada que grassa no ANC e ameaça a sua legitimidade.

É neste contexto que o partido que governa a África do Sul desde o fim do apartheid tenta lutar pela sua permanência no poder. Com eleições legislativas no próximo ano, o ANC é ameaçado pela Aliança Democrática, cada vez mais popular junto do eleitorado urbano de classe média, e pelos Combatentes pela Liberdade Económica, que acusam o antigo movimento de libertação de ter traído os seus pilares fundadores.

São estes últimos que têm promovido o debate em torno da reforma agrária, defendendo as expropriações sem direito a compensação. O ANC, diz a Economist, “acredita que tem de ser visto a fazer alguma coisa”. Caberá a Ramaphosa, que chegou à presidência como um moderado e um fazedor de pontes, saber até onde poderá deixar o sentimento de desencanto dos sul-africanos comandar as suas políticas. 

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