Jean Pisani-Ferry: "É preciso abandonar a ideia de que já nos safámos da crise"

O euro ainda não está a salvo. O maior obstáculo para a sua reforma são os Nórdicos. A Alemanha evoluiu. A Itália veio baralhar o jogo. O populismo obriga a separar as águas.

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Pisani-Ferry num comício na campanha eleitoral de Emmanuel Macron GETTY IMAGES

Segunda parte da entrevista a Jean Pisani-Ferry: Portugal provou que o pessimismo com que era encarado foi excessivo

Fundou o Bruegel, think-tank de prestígio sobre as questões europeias, em especial na esfera da economia e da moeda. É professor em Sciences Po, Paris, e da Hertie School of Governance, Berlim. Foi o coordenador do programa eleitoral de Emmanuel Macron. Uma voz sempre escutada, sobretudo em torno do euro e da sua indispensável reforma para evitar crises futuras. Pisany-Ferry vem a Lisboa participar na conferência anual da Fundação Francisco Manuel dos Santos que este ano decorre decorre sobre o tema “O Trabalho do Futuro”.

Escreveu que a sobrevivência do euro deveu-se mais ao medo das consequências do seu fim do que à convicção de que era uma garantia de estabilidade e de prosperidade. É aqui que estamos? O que falta ainda fazer?

Sim, é verdade. Penso que o que assustou e levou a agir foi ter-se percebido as consequências que teria o desmantelamento do euro para a Europa - económicas, financeiras, sociais e também politicas. O que não soubemos, de resto desde o início, foi fazer do euro um instrumento de prosperidade colectiva. Fizemos muitos erros durante a sua primeira década de vida. A segunda foi consagrada à gestão das crises e à redução das vulnerabilidades financeiras da zona euro. O que continua a faltar é um projecto de desenvolvimento das nossas economias, de prosperidade partilhada e da protecção dos nossos interesses num contexto internacional muito mais adverso. Quando introduzimos o euro, em 1999, os governos disseram: está feito. A partir de agora podemos tirar os benefícios e ocuparmo-nos de outras coisas. Não estava feito. Estava feito no plano monetário e no plano do BCE, não estava feito no plano financeiro e no plano económico e social.

Havia, aparentemente, uma oportunidade, depois da eleição de Emmanuel Macron e da reeleição de Angela Merkel, de dar um novo impulso à Europa. A cimeira de Junho, que tinha esse objectivo, fez o que era preciso? Estão lançadas as bases de uma zona euro à prova da próxima crise?

A declaração franco-alemã de Mesberg foi mais longe do que a maioria das pessoas julgava possível. De um lado e de outro, houve a vontade de encontrar compromissos positivos e substantivos, e não apenas para manter as aparências. O que se passou depois foi que a França e a Alemanha não convenceram os seus parceiros. Têm a oposição do grupo que é liderado pela Holanda, muito reservado em matéria de orçamento da zona euro, e têm agora a situação italiana, que preocupa toda a gente e que, de repente, altera tudo. Menos, aliás, em matéria de orçamento, mas principalmente em matéria de união bancária. Os bancos italianos voltaram a comprar dívida italiana, os bancos estrangeiros estão a vender dívida italiana, estamos em vias de recriar a situação potencialmente perigosa da interacção perversa entre a banca e o soberano, que queríamos justamente evitar com a união bancária. É este o paradoxo da situação italiana. Vivemos uma situação complicada: a vontade franco-alemã; a resistência forte da Europa do Norte; a situação em Itália; e as tensões que tudo isto está a criar.

Essa realidade dá argumentos à chanceler para rejeitar algumas das propostas de Macron, nomeadamente a ideia de um orçamento da zona euro, maior partilha de riscos e o terceiro pilar da união bancária?

Mas também é preciso ver até que ponto a chanceler evoluiu. A Alemanha está a evoluir sobre a questão europeia, por razões que são, em parte, internacionais e, em parte, internas à própria União Europeia e à zona euro. A Alemanha via-se tradicionalmente como um país que se sentia à vontade num mundo que lhe era favorável, da globalização tranquila. Alguns olhavam para os parceiros europeus como um fardo. De repente, descobre que afinal a Europa lhe é indispensável num mundo muito mais hostil, onde as relações de força se tornaram muito mais importantes. A América de Trump é muito mais agressiva em relação à Alemanha do que em relação a muitos outros países, por razões sobretudo comerciais. Creio que a visão do mundo da Alemanha está a mudar. E isso tem implicações para a zona euro. Não é por acaso que Merkel fala agora de uma Europa que seja capaz de negociar, de defender os seus interesses, e do reforço da zona euro.

E as razões internas à própria Europa? Têm a ver com os nacionalismos?

É isso. A coligação que governa em Berlim está muito inquieta com as tomadas de posição de políticos como Viktor Orbán ou com a evolução polaca - em síntese, com a linha que recusa totalmente um conjunto de valores europeus e um certo número de regras europeias. A Alemanha, que mantinha uma certa reserva em relação à zona euro e que preferia sempre funcionar a 27, começa a dar-se conta de que há, porventura, uma fractura que se está a fazer com os países que não querem a integração europeia, que têm uma posição muito mais nacionalista, que se alinham numa visão iliberal do ponto de vista político – é isto que também está a contribuir para essa mudança da posição alemã. Porque uma União a 27 com países que não partilham os mesmos valores e que recusam um nível de solidariedade elementar, não é algo que nos possa levar muito longe.

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Acha que a urgência da reforma do euro não corre o risco de se ver afectada pela omnipresença do debate sobre as migrações?

Não penso que isso implique que o euro foi posto de lado. A zona euro continua frágil. A construção do euro continua frágil, a união bancária ainda tem de ser completada, as capacidades de acção orçamental continuam a ser limitadas. No plano financeiro, na capacidade de absorver choques, não estamos ainda onde deveríamos estar. Um conjunto de economistas franco-alemães, entre os quais me incluo, elaborou um documento com algumas propostas, que nem sempre coincidem com as propostas oficiais [dos dois Governos], mas cuja mensagem comum foi: não chegam os pequenos compromissos; temos de vencer as divergências encontrando soluções criativas que levem em conta as preocupações francesas (a solidariedade) e alemãs (a disciplina). É preciso sobretudo abandonar a ideia de que já nos safámos da crise e que nos podemos ocupar de outras coisas. Claro que há outros problemas, mas o pior que nos podia acontecer seria juntarmos a esses problemas uma crise da zona euro.

Essas propostas falam de um Fundo significativo (0,5 por cento do PIB) para acorrer a um choque externo sobre um ou mais países; na restruturação ordenada da dívida dentro da zona euro; de um critério diferente para o défice, calculado em função das metas da redução da dívida a médio e longo prazo. Isso não existe no discurso oficial dos governos.

Atenção, nós não dizemos que é preciso reestruturar automaticamente a dívida, pelo contrário… Seria sempre uma medida de último recurso. O que dizemos é que é preciso resolver as crises dentro da zona euro, em vez de dizer, face a situações desse tipo, que a única solução é expulsar um país. Isso criaria imediatamente uma vaga de especulação que enfraqueceria toda a gente. Seria gravíssimo. O que dizemos é que é preciso encarar as situações extremas e saber como devem ser tratadas. É preciso que os países o saibam e que os investidores o percebam, para que sejam capazes de ter comportamentos adequados. Se os governos quiserem ignorar as regras, é preciso que fiquem com a responsabilidade pelas suas decisões e as respectivas consequências.

Viktor Orbán e Matteo Salvini anunciaram uma aliança contra várias políticas europeias, do euro às migrações, visando directamente o Presidente francês como o símbolo da Europa que rejeitam. Macron, com a esperança que gerou há um ano, ainda tem força para liderar um grande movimento europeu?

Escute, os obstáculos estão aí. Um grande movimento europeu não é fácil de lançar. Até porque ele tem coisas a fazer em França e porque ainda não levou por diante uma reforma profunda da zona euro. Mas o que Orbán e Salvini disseram claramente é que há duas concepções da Europa, distintas: uma concepção de uma economia e de uma sociedade abertas, e uma concepção de uma Europa fechada. Eles centram-se na questão da imigração porque é isso que faz medo, mas o que defendem é muito mais profundo. A pergunta é: fazemos parte de uma comunidade que assenta na partilha de valores e aceitamos que as nossas constituições nos impõem deveres de solidariedade face aos que são perseguidos e, ao mesmo tempo, um dever de solidariedade para com os países da União que enfrentam um afluxo de refugiados; ou a Europa é um sítio onde vamos procurar os nossos interesses, ponto final? Curiosamente, Orbán é membro do PPE e não consigo compreender como é que esse partido consegue albergar ao mesmo tempo a linha Merkel e a linha Orbán, quando Orbán passa a vida a atacar a política da chanceler. Isso não é bom para clarificar as escolhas que vão ter de ser feitas nas eleições para o Parlamento Europeu. Esta falta de clareza não é boa nem para a democracia nem para a Europa. Vivemos um momento em que, sobre as grandes escolhas - sobre o liberalismo político, sobre a nossa concepção da democracia face às tentações autoritárias – a defesa das sociedades abertas e solidárias vai para lá da esquerda e da direita. É outra coisa.

Qual é o balanço das reformas do primeiro ano de Macron no Eliseu?

Em França, como em muitos outros países, prometia-se muito nas campanhas eleitorais e, depois, fazia-se outra coisa no governo. Já é alguma coisa que Macron tenha feito as reformas que anunciou. Agora, estamos em vias de passar a uma outra fase, na qual as escolhas e as reformas que vão ser feitas já não são as que estavam no programa. Passamos de uma fase marcada pela vontade de fazer depressa para uma fase de construção de consensos e a questão de saber a quem beneficiam essas reformas. Macron mantém-se fiel à sua filosofia: criar as capacidades de “empowerment” [dos cidadãos], combatendo as desigualdades de acesso, ou seja, em vez de distribuir dinheiro, dar mais capacidades às pessoas por via da formação e do acesso ao mercado. Neste domínio, fez-se muita coisa. A França é um país habituado a deitar dinheiro sobre os problemas, esperando reduzi-los. A filosofia dele é outra, que creio bastante acertada: tratemos de resolver os problemas. Talvez nem sempre bem explicada. Desse ponto de vista, há a percepção de que este Governo preocupa-se mais com as classes mais favorecidas do que com as classes populares. Houve medidas para os baixos rendimentos ou para a precariedade, mas não é essa a percepção das pessoas. Tem de estar mais atento a isto a partir de agora.

São de esperar consequências negativas da política de Trump e do Brexit?

As medidas proteccionistas não atingem demasiado a Europa mas criam um clima internacional que não é positivo, e isso terá inevitavelmente consequências negativas nas economias. A política de Trump não é boa para os EUA, mesmo se produz efeitos imediatos muito favoráveis, e não é boa para o mundo em geral. Mas temos de contar com isso.

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Sobre o Brexit, vai depender do resultado das negociações. A minha convicção é que o nosso interesse não é focarmo-nos em tudo o que pode ser transferido de Londres para outras praças financeiras do continente. É, sim, encontrar uma parceria que leve em conta a escolha dos britânicos - e essa escolha não lhes pode dar o mesmo acesso ao Mercado Único - mas que minimize as consequências negativas para eles e para nós. A falta de acordo seria má para toda a gente. É por isso que penso que as propostas que foram feitas pelo Governo britânico, mesmo que seja preciso discuti-las, devem ser olhadas como um sinal de vontade de avançar.

Apenas uma questão sobre a sua comunicação em Lisboa. Chama-se “O Estado Social no tempo da Uber”. Quer dizer o quê?

Quer dizer muitas coisas. Estamos em vias de mudar a organização do trabalho. Tivemos uma protecção social, um sistema de direitos sociais e uma negociação colectiva que assentavam no modelo industrial. É preciso passar desse modelo ao modelo digital. Numa palavra, quer dizer que muito do que estava ligado à profissão e ao estatuto deve ser reexaminado. Amanhã, será impossível manter as diferenças estanques entre um assalariado ou um não assalariado. Vai ser preciso repensar o sistema de protecção na saúde, reforma, desemprego, negociação colectiva.

Por enquanto, caminhamos para um sistema de menor protecção, por exemplo, como o das pessoas que trabalham para as plataformas digitais como a Uber?

É evidente. Temos um sistema que foi criado para os chamados independentes, mas estes novos trabalhos são muito diferentes dos independentes tradicionais. Esses tinham um capital, uma permanência, preferiam muitas vezes menos protecção social para construir as suas próprias reservas. Isso não tem nada a ver com alguém que faz entregas ou guia carros para a Uber. É outra coisa. Há diferentes opções possíveis. É isso que vamos discutir em Lisboa.

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