O psicadelismo dos The Heliocentrics deu Milhões de voltas em torno de si mesmo

Na recta final do Milhões de Festa, houve o funaná dos veteranos Os Tubarões, o experimentalismo dos Pharoah Overlord, o noise das Queen Bee Supergroup e a electrónica de Mouse on Mars. Mas, por atalhos cósmicos, o festival acabou por girar em torno da genial banda britânica.

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Copérnico não estava enganado ou, pelo menos, ao lançar as bases da teoria heliocêntrica, andou muito perto do que é hoje aceite pela comunidade cientifica como a verdade mais plausível. É certo que o sol não está no centro do universo, mas está no centro do nosso universo, a Via Láctea. Da mesma forma que os The Heliocentrics não seriam à partida o centro do Milhões de Festa, mas, por atalhos cósmicos, acabou por ser em torno deles que todo o último dia do festival girou.

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Copérnico não estava enganado ou, pelo menos, ao lançar as bases da teoria heliocêntrica, andou muito perto do que é hoje aceite pela comunidade cientifica como a verdade mais plausível. É certo que o sol não está no centro do universo, mas está no centro do nosso universo, a Via Láctea. Da mesma forma que os The Heliocentrics não seriam à partida o centro do Milhões de Festa, mas, por atalhos cósmicos, acabou por ser em torno deles que todo o último dia do festival girou.

O jazz psicadélico dos britânicos foi a cola que uniu um round de concertos fragmentado entre os ritmos quentes do funaná dos Tubarões, a electrónica irrequieta de Mouse on Mars, o psicadelismo circular e empolgante dos Pharaoh Overlord e o noise caótico das Queen Bee Supergroup. No menos concorrido dos três dias fortes desta edição do renovado festival, pelo menos uma mão cheia de actuações bem conseguidas reforça a urgência da continuidade do Milhões de Festa como espaço privilegiado para a descoberta de novas sonoridades. As datas ainda não estão definidas (a experiência de trocar o final de Julho pelo início de Setembro terá sido um teste), mas ele voltará em 2019, garante a organização.

Longe do futuro, concentremo-nos na edição que findou este domingo, deixando caminho aberto para a recolha dos despojos. Entre os quatro palcos – distribuídos por dois recintos, a contar com a Piscina, e um maior que é Barcelos, onde também há concertos –, houve música que há-de ter eco na discografia e na vida de quem por lá passou.

Kraut e noise desgovernado

Os Pharoah Overlord terão sido uma dessas descobertas. Os finlandeses não são mais do que uma reciclagem dos Circle, que dois dias antes já tinham passado pelo palco Milhões, mas numa versão puramente psicadélica assente nas premissas do krautrock e do experimentalismo. Os membros são os mesmos, só que aqui deixam toda a parafernália kitsch de lado e concentram-se apenas em rasgar terreno por instrumentais empolgantes e pegajosos, trilhados por guitarras circulares e uma secção rítmica composta por um baixo redondo e uma bateria a desfilar mantras contínuos. Esta é tocada por quatro braços que partilham o mesmo prato de choques – dois desses braços são de Mika Ratto, que nos Circle assume as teclas e a posição de vocalista principal.

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Mika Ratto e Tommi Leppänen dividem a bateria dos Pharoah Overlord, banda-gémea dos Circle André Rodrigues

O núcleo duro da banda é composto ainda por Jussi Lehtisalo (baixo), Janne Westerlund (guitarra) e Tomi Leppänen (bateria), que em 2000 encontraram este atalho para canalizar o que não cabia na banda-mãe. Ainda que existam pontos comuns entre as duas bandas, sobretudo no lado mais kraut que os Circle também têm, os Pharaoh Overlord escavam mais fundo em direcção ao experimentalismo sónico. Tocaram ao final da tarde na Piscina. Seria interessante que dali saltassem para a experiência de um regresso a Portugal numa sala fechada.

A despedida desta edição far-se-ia mais tarde no Palco Taina, com uma sessão conduzida por DJ Anadolu Ekspres, que às 2h se empenhou na missão de desenterrar raridades da música turca. Horas antes, ainda durante a tarde, encontrámos o caos noise feito pelo colectivo Queen Bee Supergroup, constituído por uma dezena de elementos dos projectos femininos GSY!PA, UKAEA, ou Phantom Chips – que também passaram pelo festival.

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As UKAEA ANDRÉ RODRIGUES

Juntas para uma demonstração de força e de girl power, vociferaram melodias pouco harmoniosas, manipuladas por pedais de efeitos e outra parafernália sónica e suportadas por uma guitarra e por uma bateria perdidas noutra dimensão. E a anarquia do palco passou para a plateia, que se misturou com os elementos da banda para formar uma abelha rainha colectiva – um emaranhado de tecidos pretos e amarelos entrelaçados nalguns membros da audiência delimitava a área reservada ao público. Lançou-se glitter, e outras matérias brilhantes. Todos os que estão na frente foram apanhados por este organismo vivo para por momentos fazerem também parte dele.

Dentro do espectro em que se encaixam, as Queen Bee Supergroup beneficiam da mais-valia de um equilíbrio óptimo entre a performance e o caos da narrativa sonora que apresentam. Uma ganha com a outra, embora, isolada, a paisagem sonora que criam também pudesse sobreviver.

Jazz estratosférico

Igualmente complexos, mas harmoniosamente estruturados, foram a aposta mais certeira do último dia, e, a par dos Circle e de Nubya Garcia, de todo o cartaz do festival. Falamos dos britânicos The Heliocentrics, que ao Milhões de Festa chegaram acompanhados da vocalista eslovaca Barbora Patkova, com quem gravaram o último álbum de estúdio, A World of Masks.

Instrumentalmente, aguentam-se sem ajudas externas, mas com Patkova catapultam-se para muito perto da genialidade. Situam-se num espectro muito largo de influências, que vão do jazz ao psych-rock, passando ocasionalmente, sem preponderância, pelo funk ou até mesmo pelo progressivo.

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Os Heliocentrics apresentaram-se com a magnética vocalista polaca Barbara Patkova ANDRÉ RODRIGUES

A estrutura das composições da banda apoia-se num baixo constantemente presente, balbuciante e dinâmico, que sustenta as músicas, muitas vezes cortadas por um violino nervoso e por guitarras dilacerantes a abrirem caminho para um teclado sem regras, delirante e espacial, que ocupa o espaço deixado pelos contratempos subtis de um baterista inventivo e solto. No meio disto tudo, a voz de Patkova encontra uma via para lançar-se em linhas melódicas desprendidas de toda a acção que decorre em pano de fundo, sem comprometer a musicalidade dos temas. Pelo contrário, confere-lhes a harmonia-guia que os torna independentes. Serve-se de uma voz amadurecida e criada no jazz, exótica o suficiente para lhe dar carisma – nos temas em que canta na língua de origem esse exotismo é evidenciado. A reforçar esse mesmo carisma está a sua performance em palco, pelo qual se passeia (digamos antes: desliza) com movimentos sensuais e magnéticos.

Os elementos da banda dizem querer tocar algo diferente que vá ao encontro das suas necessidades enquanto ouvintes. E conseguem de facto, com o seu space/psych-rock fundamentado no jazz, criar uma sonoridade fresca e apelativa. Ainda que o último dia do festival oferecesse outros motivos de interesse, os The Heliocentrics estiveram a milhas de destaque de todo o resto. O público correspondeu com um pedido de um encore, ao qual acederam.

Pelo mesmo palco passaria ainda uma das maiores instituições do funaná e da morna, Os Tubarões, que encerraram o palco Milhões espalhando mensagens de e para a diáspora cabo-verdiana. Desde os anos 1970 que o fazem, e fazem-no bem, como seria de esperar de uma banda com tantas décadas de experiência. Mas com o recinto mais despido que nos dias anteriores, faltou o ambiente de festa que um concerto destes pede. Ainda assim, os mais resistentes tentaram tapar as clareiras abertas em frente ao palco, arriscando passos de dança inspirados pelos sons de Cabo Verde.

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O público mais entusiástico conseguiu tapar as clareiras abertas em frente aos históricos Tubarões ANDRÉ RODRIGUES

Poucos minutos antes, os passos de dança frente ao palco Lovers eram outros, e mais de acordo com a electrónica frenética dos Mouse on Mars, que figuram no catálogo da Ipecac, a editora fundada por Mike Patton, vocalista de Faith no More, Fantômas e de um rol imenso de outros projectos. O duo alemão cumpriu com un set do agrado dos fãs que ali se juntaram.

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Os alemães Mouse on Mars ANDRÉ RODRIGUES

A edição de 2018, a 11.ª, que tardou a ser anunciada mas acabou por se cumprir (não em Julho como noutros anos, mas em Setembro), está fechada, o Milhões de Festa voltará no próximo ano. Mas à excepção de sábado, o dia mais concorrido, a bilheteira poderá ter-se ressentido da mudança de datas: o festival de Barcelos registou nos quatro dias (o primeiro é gratuito) um total de dez mil entradas.