Porque publicaria o artigo anónimo do New York Times

Teria sido preferível acolher a opinião anónima num texto de investigação jornalística em vez de assumir essa crueza documental? Mas não seria essa uma forma hipócrita de rodear a questão e manter as aparências «politicamente correctas» dos códigos jornalísticos?

Usa-se e abusa-se das fontes anónimas no jornalismo de hoje, o que constitui, tantas vezes, uma facilidade e uma irresponsabilidade. Mas pode haver excepções à regra, que se justificam pela importância relevante de uma informação que de outra maneira não seria possível divulgar. É o caso do artigo de opinião anónimo publicado recentemente pelo New York Times (NYT), cuja autoria é atribuída a um alto responsável da Casa Branca (ver PÚBLICO da passada sexta-feira). Se, em princípio, enquanto responsável editorial de um jornal – como já fui – não publicaria nenhum texto de opinião anónimo – e, de resto, não me lembro de o ter feito nunca –, admito as razões apresentadas pelo editor das páginas de opinião do NYT, considerando o indiscutível interesse público da matéria publicitada, o facto de o jornal – um dos mais credíveis e respeitados em todo o mundo – não ter dúvidas sobre a identidade do autor do texto e este ter exigido o anonimato para permitir a divulgação da sua tribuna.

A leitura integral do artigo permite-nos ajuizar da sua importância como testemunho e documento único no género sobre a forma como funciona a presidência Trump. Mais do que isso: é um texto que nos leva a perceber melhor as sucessivas incongruências das tomadas de decisão presidenciais e a verdadeira esquizofrenia que reina na Casa Branca, nomeadamente na relação com a Rússia e Putin – incluindo a contradição gritante entre as cumplicidades manifestadas por Trump e o líder russo e as represálias decretadas pela diplomacia americana contra o Kremlin na sequência do envenenamento de um antigo agente russo no Reino Unido.

Evidentemente, isto não nos impede de pensar o que quisermos sobre o comportamento político e moral do autor da tribuna anónima que declara fazer parte da «resistência» interna da Administração republicana contra os desvarios do Presidente. Porque é que ele, pura e simplesmente, não se demite? Aparentemente porque acredita, como outros membros dessa «resistência», no trabalho positivo desenvolvido pela Administração em vários domínios – «uma desregulação eficaz, uma reforma fiscal histórica, forças armadas mais poderosas», por exemplo –, remando contra a maré da liderança «impetuosa», «mesquinha» e «ineficaz» de um Presidente que muda de opinião de um minuto para outro. Ou seja, se não fosse esse punhado de «resistentes» às «piores tendências» de Trump, à sua «preferência manifesta por autocratas» como Putin e Kim Jong-un em detrimento dos velhos aliados dos Estados Unidos, a actual Administração americana ficaria refém das «pulsões mais negativas» do Presidente. Daí a existência de «outro corredor» na Casa Branca onde «países como a Rússia são denunciados pela sua ingerência e punidos por isso, e onde os nossos aliados no mundo são considerados como pares e não ridicularizados como rivais».

O autor da tribuna anónima «decuplicou a paranóia do Presidente e reforçou a sua obstinação», como escreve um dos seus críticos na revista The Atlantic? As reacções coléricas de Trump parecem comprová-lo. Mas isso não confirma também a importância documental do artigo publicado pelo NYT? Teria sido preferível acolher a opinião anónima num texto de investigação jornalística em vez de assumir essa crueza documental? Mas não seria essa uma forma hipócrita de rodear a questão e manter as aparências «politicamente correctas» dos códigos jornalísticos? Seja como for, estamos perante um testemunho histórico que se cruza com o próximo lançamento do livro que promete ser esmagador de Bob Woodward sobre a forma impulsiva, errática e nada, mesmo nada racional – ao contrário do que parecem pretender dois académicos portugueses entrevistados nesta sexta-feira pelo PÚBLICO – como Trump exerce o seu poder. Sem esquecer, conforme escreve o autor do artigo anónimo, que «a raiz do problema é a amoralidade do Presidente».

 
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