O país do fogo-de-artifício

O país, imaginando um futuro distópico, sobreviverá sobretudo enquanto entidade mitológica, recriada ilusoriamente de forma a preencher a própria ausência. Um território colapsado. Esvaziado de habitantes, esquecido e vazio nas suas entranhas.

Foto
Márcia Saldanha

Este ano não fizemos grandes planos de férias. Decidimos que não podíamos gastar dinheiro em viagens de avião ou em estadias para destinos mais ou menos exóticos. A razão é simples: somos daqueles trintões que ganham o mesmo desde que saíram da faculdade, o mesmo que já não era muito aos 20 e que agora, com rendas e contas para pagar, numa cidade entregue à especulação, se torna praticamente incomportável. Sabemos que haverá muita gente em pior situação que nós e que somos de alguma forma privilegiados com apoios familiares aqui e ali, mas sabemos também que somos representantes de uma geração que, sem se dar conta, antes de saber exactamente o que queria, já tinha parte dos sonhos hipotecados e das liberdades limitadas caso aspirasse simplesmente a permanecer no país. Uma geração a viver uma crise de emancipação permanente.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Este ano não fizemos grandes planos de férias. Decidimos que não podíamos gastar dinheiro em viagens de avião ou em estadias para destinos mais ou menos exóticos. A razão é simples: somos daqueles trintões que ganham o mesmo desde que saíram da faculdade, o mesmo que já não era muito aos 20 e que agora, com rendas e contas para pagar, numa cidade entregue à especulação, se torna praticamente incomportável. Sabemos que haverá muita gente em pior situação que nós e que somos de alguma forma privilegiados com apoios familiares aqui e ali, mas sabemos também que somos representantes de uma geração que, sem se dar conta, antes de saber exactamente o que queria, já tinha parte dos sonhos hipotecados e das liberdades limitadas caso aspirasse simplesmente a permanecer no país. Uma geração a viver uma crise de emancipação permanente.

Voltando às ferias, a decisão foi seguir em direcção ao Gerês com o carro atulhado de kits de campismo, compras de supermercado e roupas. Acampámos num parque de campismo "ecológico" com uma paisagem deslumbrante, mas onde um banho não podia durar mais de dez segundos e a água não era aquecida. Não saímos de lá sem uma animada discussão sobre as motivações económicas que se escondem por detrás de argumentos mais ou "esverdeados" e uma conversa sobre como alguns parques de campismo em Portugal se assemelham mais a espaços de celebração de desalento colectivo do que zonas de fruição e descanso. São, no fundo, para muitos, a opção para quem não tem outra, chegando mesmo a albergar moradores permanentes. Ainda nos rimos sobre a possibilidade de começar uma revolução no país através da mobilização dos campistas.

O banho frio valeu a pena, passámos os dias em cascatas de cortar a respiração, calcorreámos caminhos incríveis e comemos bem — no Norte come-se bem e uma dose de bacalhau à minhota chega para dois —, mas o mais importante foi encontrar as celebrações da festa do São Bento da Porta Aberta, uma daquelas festas de aldeia onde os emigrantes se empenham em proporcionar a maior e melhor festa, o mais longo e espectacular fogo-de-artifício. E é precisamente neste fogo-de-artifício — um cocktail de cor, efeitos mágicos e explosões aéreas — que investem os sonhos, as desilusões e a overdose de nostalgia. O fogo-de-artifício em Portugal é mais do que um mero espectáculo pirotécnico; é um fenómeno de condensação sentimental sobre os encontros e desencontros da vida.

Ficámos até ao fim da festa e, entre as filarmónicas que agora tocam covers, os cantares de desafio e bastantes cervejas conseguimos trocar algumas palavras com quem saíra e ficara no país e que, por estes dias, festejava. Em todos sentimos que a euforia não conseguia mascarar por completo uma certa inevitabilidade no olhar, essa que por vezes se revela em noites que já vão altas e maduras. Entre os que sentiam orgulho por terem permanecido em Portugal "apesar das dificuldades" e os que sentiam orgulho por terem abandonado o país, mas "ganhado a vida", a sensação a reter é que a vida os tinha vencido a todos — semeando as ausências de uns nos outros como um jogo de espelhos sem solução possível.

Percebemos ainda que também nós estávamos entrincheirados nesse lugar charneira, situado entre desejos e impossibilidades. Perante os salários baixos, a precariedade laboral e as casas transformadas em "veículos" de rentabilidade estratosférica, vamos continuando a erguer esse muro ancestral — que, ao contrário do muro do Trump, é invisível —, capaz de projectar sombras no tempo e perpetuar desilusões irremediáveis por várias gerações.

Bem podem anunciar tímidas medidas para atrair os emigrantes e fixar habitantes, o mais provável é que nem eles voltem nem nós possamos ficar. O país, imaginando um futuro distópico, sobreviverá sobretudo enquanto entidade mitológica, recriada ilusoriamente de forma a preencher a própria ausência. Um território colapsado. Esvaziado de habitantes, esquecido e vazio nas suas entranhas, invadido por elites, especuladores e a sua classe servente nas margens. Uma coisa é certa. Se sairmos, não voltaremos com fogo-de-artifício — sinais (que embora comoventes) são indiciadores de que a sociedade portuguesa é ainda incapaz de se emancipar contra a desigualdade e a injustiça que a afecta.