Terminal de contentores de Sines acaba com “onda perfeita” de S. Torpes

A nova intervenção na zona portuária dá continuidade a décadas de sacrifícios exigidos a uma comunidade que já viu desaparecer uma das praias mais bonitas da costa alentejana em nome do interesse económico.

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Nuno Ferreira Santos

Um novo ciclo de conflitos voltou a abalar a comunidade de Sines. Quando não é a má qualidade do ar, impregnado de emanações gasosas libertadas pelas refinarias de petróleo e central termoeléctrica, ou a descarga de efluentes contaminados na linha de costa que impossibilitam o consumo de peixe e mergulho nas águas do mar, o mal-estar da população é provocado pelas obras no porto de Sines que terão impacto na praia de S. Torpes. Mas a administração portuária não é obrigada a avaliar as consequências de obras na prática do surf.

Desta vez, as atenções e os protestos concentram-se na construção da 1.ª fase do terminal de contentores Vasco da Gama com capacidade para movimentar uma carga de 3 milhões de TEU (unidade equivalente a um contentor de 20 pés) e um parque de contentores com uma área disponível de 57 hectares.

Do ponto de vista ambiental, “o empreendimento é viável”, assegura o Estudo de Impacte Ambiental (EIA) que esteve em discussão pública até ao dia 19 de Junho e que dá suporte ao projecto. No entanto, a sua construção terá um impacto negativo na praia de São Torpes. A barreira de pedra e betão irá destruir “a onda perfeita” que leva até a esta zona balnear um grande número de entusiastas desta prática desportiva ligada ao mar, sobretudo crianças e jovens.

É precisamente este último constrangimento que tem suscitado, desde 2015, os protestos das organizações ligadas ao surf, inconformadas com a destruição de um tipo de ondulação “que vale muito dinheiro”, realça Carlos Santos, dirigente da associação Sines Surf Clube, nas explicações que prestou ao PÚBLICO. E que ondas são essas? “São mais pequenas, regulares e fortes que dão para trabalhar durante o Inverno, o que é excelente para o ensino e a aprendizagem de surf”, explica Flávio Jorge, proprietário da Escola de Surf do Litoral Alentejano.

A temperatura da água que, tanto de Inverno como de Verão, oscila em certos pontos do areal entre os 25 e os 30 graus é outro dos predicados da praia de S. Torpes, a qual tem um areal com cerca de cinco quilómetros de extensão integrado no extremo norte do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV).  

A nova fase de construção do terminal Vasco da Gama acabará, “em definitivo, com o surf em São Torpes”, antecipa Carlos Santos, frisando que os surfistas assistem há mais de uma década “ao definhar de uma praia” que tem condições únicas por causa dos bons acessos, tipo de ondulação e temperatura de água para a prática do surf, actividade que tem um grande peso na economia local.

“Não pretendemos travar nem defendemos que a ampliação do porto de Sines seja parada, mas propomos a realização de um estudo sobre a possibilidade de instalar um recife artificial” que garanta um tipo de ondulação adequado à prática do surf em S. Torpes, propõe o dirigente da Surf Clube. O EIA, aliás, preconiza a instalação de “recifes artificiais ou outras intervenções que permitam aumentar o número de locais com condições para a prática de surf e outros desportos de ondas”. Mas esta solução alternativa não colhe a anuência de Flávio Jorge, que há 43 anos está ligado ao surf e coordena a actividade da sua escola, a mais antiga da região e localizada na praia de S. Torpes. “É uma ilusão pensar que um recife artificial pode reproduzir as ondas que temos em S. Torpes”, assume, convicto.

O debate sobre as consequências ambientais de mais uma obra no porto de Sines decorre tranquilo, “com a maioria da população a não saber o que se passa”, critica o surfista nas declarações que prestou ao PÚBLICO. “Nem sequer vejo as organizações ambientalistas pronunciarem-se sobre o projecto e as suas consequências para a costa alentejana”, constata, inconformado, Flávio Jorge.

Luta surda

O facto é que a população de Sines continua a sustentar, por razões que se prendem com a preservação da qualidade ambiental, um prolongado braço de ferro com o complexo industrial e sucessivos governos que alicerçam os seus argumentos no primado do “interesse público” e do “desenvolvimento económico” do país. O EIA diz que o projecto vai gerar um “importante conjunto de impactos positivos permanentes, directos e indirectos, em especial no ordenamento do território e na sócio-economia”, nomeadamente na criação de mil novos postos de trabalho.

A ampliação do porto de Sines vai aproximar, ainda mais, a actividade associada à carga contentorizada de zonas ecológicas muito sensíveis e da faixa litoral protegida pelo Parque Natural, Sítio de Importância Comunitária da Rede Natura 2000 e Zona de Protecção Especial para as Aves. A praia de São Torpes marca o início da Costa Vicentina, um trecho do litoral único na Europa pelo seu estado de preservação mas, simultaneamente, cada vez mais ameaçado. Desenvolve-se desde a ribeira da Junqueira, a norte de Porto Covo, no concelho de Sines, até ao limite do concelho de Vila do Bispo, junto ao Burgau, passando pelos concelhos de Odemira e Aljezur. É uma extensa zona costeira arenosa com cerca de 60.567 hectares de área terrestre e 28.858 hectares de área marítima constituída por uma faixa litoral com dois quilómetros de largura entre S. Torpes e o Burgau, numa extensão de cerca de 110 km.

O próprio Estudo de Impacte Ambiental da Expansão do Terminal de Contentores do Porto de Sines (3.ª e 4.ª fases), apresentado em 2014, deixa claro que “a presença do Porto de Sines determina a existência de uma pressão antropogénica muito preponderante sobre a componente ecológica, que se encontra bastante alterada, em particular no meio terrestre.”

Questionado sobre uma eventual abertura da Administração do Porto de Sines (APS) a uma alteração no projecto que salvaguarde as actuais características da praia de S. Torpes, Carlos Santos não alimenta expectativas nesse sentido. “Nada os vai conseguir demover” de materializar o projecto que está no papel, sublinha.

E muito menos acalentam a esperança de que a sua luta tenha sucesso. “O clube [Sines Surf Clube] é patrocinado por empresas que utilizam o porto de Sines e que investem no novo terminal e muitos surfistas trabalham nestas empresas”. Logo, a mobilização, à semelhança do que aconteceu na greve verde de 1982, entra no campo da utopia. "Acreditamos que é mais fácil o consenso que a revolução”, assume, pragmático, Carlos Santos.

A procura de consenso em detrimento das posições de força norteou igualmente o executivo municipal de Sines quando tomou posição sobre o EIA, na sua reunião ordinária de 7 de Junho. O documento foi aprovado, com apenas alguns reparos. Para os autarcas, o estudo “é pouco claro” quanto às consequências da construção do terminal Vasco da Gama na actividade pesqueira, que é de “especial relevância para Sines”, assim como a prática de surf em S. Torpes, que “fica em risco”.

Sobre este último ponto, a Associação SOS Salvem o Surf já colocou a questão à APS, que reconheceu existir uma lacuna legal. Com efeito, “os impactes no surf não são estudados, por regra, nas obras costeiras”, realçou a empresa gestora do porto de Sines. A solução alternativa também está contemplada no EIA. Propõe medidas de compensação para as três escolas de surf que estão instaladas em S. Torpes, que poderão passar por indemnizações financeiras. O documento sugere ainda que se melhorem as condições para a prática do surf noutras praias de Sines.

Décadas de mal-estar

Em meados dos anos 70, quando a construção do novo porto registava uma grande intensidade e incutia, na população, um misto de expectativas de vida melhor e o receio de perda de identidade, o poeta Al Berto, que na altura vivia em Sines, dava conta no seu diário da realidade que o cercava: “(…) Vivemos com essas chaminés a envenenarem-nos (…). A vida aqui, a continuarmos assim, vai ser uma 'alface azul'; e talvez consigamos, com o tempo, alimentarmo-nos de alfaces azuis e peixes de olhos gaseados.”

O projecto portuário de Sines impôs a expropriação de mais de 41 mil hectares de terras e uma forte degradação do meio ambiente. Deste total de área expropriada, a Zona Industrial e Logística de Sines (ZILS) ocupa actualmente uma área superior a 3.000 hectares dos 4.000 que estavam sob a jurisdição do Gabinete da Área de Sines (GAS), organismo extinto em 1989 e que foi o instrumento que deu sequência à “expropriação sistemática” feita a 220 proprietários de terras para desenvolver o projecto industrial e portuário.

Ou seja, a cerca de 60% deste imenso território “não foi dado destino”, como reconheceu o Supremo Tribunal Administrativo, no acórdão final que proferiu a 9 de Fevereiro de 2005, e que determinou a primeira reversão de terras a um antigo proprietário, precisamente a área que segue paralela à praia de S. Torpes. Existe ainda uma área aproximada de 11.500 hectares que ficou afecta ao Ministério da Agricultura e está abandonada e coberta de mato. Os antigos proprietários estão a reclamar a sua reversão.

A dimensão do impacto causado pela obra gerou um movimento de protesto que culminou, em 1982, na primeira greve verde que ocorreu em Portugal. Pescadores, agricultores, pequenos proprietários de terras e rendeiros barraram, com pequenos barcos de pesca, a entrada e saída do porto dos petroleiros no porto de Sines. A situação tinha atingido o seu ponto de ruptura quando o pescado que se trazia da faina cheirava a petróleo e as análises então efectuadas admitiam não haver “implicações na saúde pública” 

Nos anos 70 e 80 do século passado eram os pescadores e os agricultores que dinamizavam a contestação à “brutal” transformação que a instalação do porto de Sines estava a provocar com a construção do chamado porto de águas profundas. Nos dias de hoje, são os surfistas a tomar a liderança na contestação às decisões do Governo e da entidade portuária mas por razões bem distintas.

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