A inteligência vai chegar ao nosso caixote do lixo

Não são apenas os resíduos eléctricos e electrónicos que vão aumentar. O próprio caixote de lixo será outro: um equipamento electrónico inteligente, com capacidade de identificar o lixo, separá-lo e até... falar connosco. Antevisão de Graça Martinho, investigadora da FCT Nova

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As respostas que se possam antever para estas questões estão intrinsecamente relacionadas com o crescimento demográfico, as disponibilidades e os preços dos recursos naturais, os modelos económicos e as políticas de ambiente que se vierem a implementar, as inovações da ciência e da tecnologia, os padrões de consumo e os estilos de vida da nossa sociedade. Estes fatores vão condicionar as nossas atitudes e comportamentos face aos resíduos e ditarão a forma como os vamos gerir no futuro.

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As respostas que se possam antever para estas questões estão intrinsecamente relacionadas com o crescimento demográfico, as disponibilidades e os preços dos recursos naturais, os modelos económicos e as políticas de ambiente que se vierem a implementar, as inovações da ciência e da tecnologia, os padrões de consumo e os estilos de vida da nossa sociedade. Estes fatores vão condicionar as nossas atitudes e comportamentos face aos resíduos e ditarão a forma como os vamos gerir no futuro.

Atualmente, cada cidadão português produz em média cerca de meia tonelada de resíduos urbanos por ano. Em 2016, a produção de resíduos urbanos aumentou 3% face à produção de 2015, e apenas 11% foram recolhidos seletivamente e encaminhados diretamente para a reciclagem (1). Cerca de 80% dos resíduos que foram colocados nos contentores de resíduos indiferenciados (e.g. papel/cartão, plástico, metais, vidro, têxteis, biorresíduos) poderiam ter um destino de reciclagem se fossem depositados ou entregues nos locais certos. Há um potencial enorme de resíduos valorizáveis que estão a ser depositados nos aterros sanitários ou destruídos nas incineradoras e que representam recursos que estamos a subtrair às gerações futuras. Em termos europeus, e apesar de alguns países terem já taxas de reciclagem bastante elevadas, em 2016 apenas 29% dos cerca de 250 milhões de toneladas de resíduos urbanos produzidos pelos europeus tiveram como destino a reciclagem.

O modelo económico vigente nas últimas décadas tem sobrevivido graças a um contínuo aumento do consumo, conseguido à custa da criação de novas necessidades, à redução da duração de vida média dos produtos e à sua rápida transformação em resíduos. Esta situação é insustentável e a curto prazo teremos de alterar radicalmente a forma como produzimos, consumimos e gerimos os nossos resíduos. Os recursos são finitos e não chegarão para satisfazer as necessidades da população mundial que a Organização das Nações Unidas (2) prevê atinjam os 9,8 mil milhões em 2050. Sendo também expectável que o rendimento médio per capita da população mundial triplique, isto significa que a procura e consumo global de recursos duplicará em 2050. Em resultado do aumento da extração dos recursos, da sua utilização e eliminação de resíduos, a OCDE (3) antevê, para 2050, consequências económicas, sociais, ambientais e de saúde potencialmente graves se nada se alterar.

A constatação destas evidências e a crise económica registada na Europa no final da primeira década deste século levaram a União Europeia a adotar o paradigma da economia circular como uma potencial estratégia político-económica para o desenvolvimento, a competitividade e a resolução dos problemas ambientais (i.e. escassez de recursos, alterações climáticas, resíduos). A economia circular exige sistemas inovadores de produção e consumo, o que inclui a conceção mais ecológica de produtos e processos, que utilizem menos recursos (matérias primas e energia), assegurem uma maior durabilidade dos produtos, facilitem a sua atualização, reparação, reciclagem e transformação em novos recursos para a economia. Muitas indústrias e serviços estão já a caminhar neste sentido porque a circularidade dos resíduos/recursos é um imperativo para a sobrevivência e sustentabilidade da própria economia.

O rápido desenvolvimento da ciência e tecnologia e sua aplicação ao nosso quotidiano, designadamente nas áreas da nanotecnologia, biotecnologia avançada, novos materiais (e.g. nanomateriais, biomateriais), impressão 3D, internet das coisas, computação em nuvem, robótica, inteligência artificial, realidade aumentada, big data, entre outras, vão alterar os nossos sistemas de produção e de consumo e, consequentemente, a quantidade e o tipo de resíduos que vamos produzir.

Um dos fluxos de resíduos que aumentarão consideravelmente é o dos equipamentos elétricos e eletrónicos (os REEE). Contudo, como estes equipamentos necessitam de uma enorme diversidade de matérias-primas, algumas críticas (e.g. antimónio, berílio, índio, germânio, grafite, terras raras, tungsténio), outras preciosas (e.g. ouro, prata, platina, paládio), outras perigosas (e.g. cádmio, mercúrio, chumbo), também nesta área estão a ser desenvolvidas tecnologias inovadoras para facilitar a recuperação destes materiais ou a sua substituição por outros menos escassos e menos prejudiciais para o ambiente, por exemplo, por papel e óxidos de metais mais abundantes e baratos.

O imperativo de recolher, recuperar e transformar os resíduos em novos recursos e produtos exigirá sistemas de gestão de resíduos inovadores, muito mais eficientes e inteligentes. A generalização da aplicação das novas tecnologias de informação e comunicação a contentores e viaturas de recolha de resíduos, como sensores de leitura e aviso do nível de enchimento de contentores, dispositivos de comunicação RFID, wi-fi e Web-GIS, entre outros, permitirão sistemas de recolha mais otimizados, dinâmicos e eficientes. Surgirão novas tecnologias e serviços associadas à logística necessária para o rastreamento, monitorização, disponibilização de peças de reposição, recolha e distribuição de produtos/resíduos em ciclo fechado e novos modelos de negócio, mais baseados na venda de serviços, como o aluguer e a partilha, e menos na venda de produtos. As centrais de triagem, reciclagem e valorização de resíduos serão cada vez mais robotizadas, as biotecnologias avançadas permitirão converter os resíduos que neste momento não têm qualquer valor em biocombustíveis ou produtos úteis para as indústrias farmacêuticas, alimentares ou cosméticas, os resíduos não valorizáveis serão encapsulados e aguardarão até que a tecnologia se desenvolva, a extração mineira dos antigos aterros será uma atividade lucrativa.

O nosso caixote do lixo do futuro será um equipamento eletrónico inteligente, terá a capacidade de identificar os resíduos, de os separar internamente para diferentes compartimentos, de nos comunicar que um determinado resíduo não deve ser aí colocado e indicar-nos o local mais próximo onde o devemos entregar. Vai informar-nos sobre a quantidade de resíduos que produzimos e quanto vamos pagar, vai ser capaz de comunicar com o serviço de recolha e dar indicação do momento em que deve ser recolhido. Poderá ainda ter um sistema de refrigeração, para evitar os odores, o que permite reduzir substancialmente a frequência de recolha.

No futuro, o nosso caixote do lixo terá poucos resíduos, não porque a consciência ambiental dos cidadãos se eleve muito, mas porque se vai pagar caro pelos resíduos que se produz, porque vão existir incentivos e sistemas mais fáceis para a separação e recuperação dos resíduos, porque as atividades de reciclagem e valorização de resíduos vão ser atividades lucrativas.

Os serviços e indústrias ligadas à recolha e tratamento de resíduos serão um dos setores que mais crescerão e os “cantoneiros do futuro” serão profissionais especializados em várias áreas da ciência e da engenharia (e.g. ambiente, eletrónica, informática, civil, materiais, mecânica, química, biológicas, física, ecologia industrial, logística, política, economia, psicologia, gestão, direito, etc.).

Mas neste fantástico e deslumbrante mundo dos resíduos vão permanecer três problemas para os quais não se anteveem soluções fáceis e que provavelmente, em 2050, continuarão a ser os grandes problemas globais – o lixo marinho, em especial os microplásticos, o lixo espacial e a poluição por resíduos de nanomateriais. Que soluções eficazes a ciência e tecnologia vai encontrar para estes resíduos?

(1) APA (2018). Dados sobre Resíduos Urbanos – Produção. Agência Portuguesa do Ambiente, disponível em: https://www.apambiente.pt/index.php?ref=16&subref=84&sub2ref=933&sub3ref=936 (consultado em julho de 2018).

(2) UN (2017). World Population Prospects: The 2017 Revision, Volume I: Comprehensive Tables (ST/ESA/SER.A/399). United Nations, Department of Economic and Social Affairs, Population Division.
(3) OECD (2012). OECD Environmental Outlook to 2050. The Consequences of Inaction. OECD Publishing. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1787/9789264122246-en.

* docente do Departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa; investigadora em recolha selectiva de resíduos e reciclagem

A autora segue o Acordo Ortográfico

Para a série Futuro Sustentável, o PÚBLICO convidou individualidades de organizações reconhecidas nas suas áreas que nos contem o que se prepara para o tempo da próxima geração.