Terapia para casais à beira-mar

Asmussen junta quatro personagens cépticas e angustiadas, desiludidas, habitantes de um mundo de relações monótonas e claustrofóbicas, à boa maneira nórdica.

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Peter Asmussen (1957-2016) é um dos mais importantes dramaturgos dinamarqueses MORTEN HOLTUM

Durante umas férias de Verão, dois casais encontram-se num hotel isolado, perto de uma praia deserta. Ano após ano, os quatro voltam a esse hotel e passam as férias juntos. Os diálogos acontecem nos dois quartos, na sala de jantar e na areia junto ao mar. É esta a acção e o cenário do texto dramático A Praia (agora publicado em versão de Pedro Mexia), de Peter Asmussen (1957-2016) — um dos mais importantes dramaturgos dinamarqueses, e cujo trabalho de escrita se estendeu também aos libretos de ópera, à televisão e ao cinema, área em que foi co-argumentista de Ondas de Paixão (1996), de Lars von Trier.

Em A Praia, Asmussen junta quatro personagens cépticas e angustiadas, desiludidas, habitantes de um mundo de relações monótonas e claustrofóbicas, um mundo em que tudo está ainda coberto por uma frágil camada de “normalidade” rotineira que querem preservar em nome de algo, mas que no entanto não esconde estar prestes a abrir brechas terríveis, a mostrar dramas íntimos que em breve se transformarão em irremediáveis e ameaçadores abismos. Os dois casais de veraneantes, como pássaros, vão ensaiando um para o outro uma espécie de confronto, mas que ao mesmo tempo se assemelha a uma dança nupcial (aparentemente não consumada, apesar de se perceber que também se encontram uma vez por outra durante o resto do ano), como se tentassem uma “terapia de casal a quatro” — usando a expressão de Pedro Mexia no posfácio — que os força a examinar a sua própria solidão. O espaço de liberdade criado pelo isolamento físico daquele cenário (Verão, férias, praia, jantares, hotel) parece levá-los a pensarem mais em si próprios, ao confronto por vezes doloroso com o seu vazio existencial e com a natureza do desejo entre uns e outros.

Pouca coisa em A Praia é aquilo que parece, mas antes o caminho que aponta e o que nas falas se pode ler de alegórico, como por exemplo quando uma das personagens encontra uma pedra de âmbar com um insecto lá encerrado há milhões de anos. Como se aquelas relações mais não fossem do que uma espécie de condenação (como a do insecto apanhado pela resina), uma carga que os protagonistas são obrigados a carregar durante toda a vida, desperdiçando-a. Benedikte, uma das personagens, pouco antes de sair de palco, diz: “Agora sei que há algures uma vida a ser vivida. E foram vocês que me convenceram disso. Convenceram-me de que há uma vida que merece ser vivida.”

A memória como a possibilidade de guardarmos o que nos marca em momentos felizes ou infelizes, surge a necessitar de legitimação: há uma máquina fotográfica e fotografias que circulam. Diz uma das personagens masculinas: “Tenho um monte de fotografias. Se não fosse isso, não me lembrava de nada do que fazemos.”

À boa maneira nórdica, e a fazer lembrar os contos do norueguês Kjell Askildsen (embora estes de maneira mais evidente), Asmussen cria um universo de náufragos à deriva num mundo de sentimentos hibernados, e onde as palavras que se pronunciam podem ser tão frias e cortantes como as lâminas de gelo que se desprendem de maneira inesperada do beiral dos telhados nórdicos. Aquele é um mundo feito de coisas que ficaram por dizer, de silêncios há muito tempo instalados, dolorosos, de silêncios de um angustiante e desesperado sentimento de vazio. Confessa uma personagem: “Passámos sempre as nossas férias junto ao mar. Mas até prefiro a floresta. Sempre adorei florestas.” Quase no final do texto, este não-dito torna-se literal e resultado da afasia de uma das personagens. Para ocupar esse espaço da “impossibilidade de dizer”, há por vezes um rádio. Logo no começo é dito: “Devíamos ter trazido um rádio. (…) Com música tudo corre melhor.” Com música tudo é mais fácil, é sabido.

Peter Asmussen esboça assim uma espécie de cartografia do desconforto emocional e da angústia que sobressalta as personagens, e que ele nos mostra através das fissuras que se vão abrindo nas relações. Aquela espécie de “terapia de casal” referida atrás não mostra eficácia. Não têm já muito a dizer uns aos outros. Chegaram a um ponto de não retorno, em que apenas as confissões têm lugar: “És a única pessoa com quem posso falar. Não consigo falar com ela. Nunca consegui. Não sei porque é mais fácil falar contigo. Bem, claro que conseguimos falar. Mas as nossas conversas não me dizem nada. Passam-me ao lado. Evito-as. É o que faço. Evito conversar com ela.” Não há já muito a dizer. Mesmo que houvesse, interroga-se uma personagem: “Mas o que é que isso adiantava?”

A Praia é, de certa forma, sobretudo um texto sobre o medo, sobre ter medo como modo de existir, ter medo de algo que se não sabe bem o que é. Mas “quando se tem medo, tem-se medo de alguma coisa!”

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