Os Serviços de Urgência e os números que não batem certo

Enquanto o financiamento hospitalar e dos cuidados de saúde primários não contemplar incentivos à excelência, continuaremos a ter serviços de urgência com falta de médicos e doentes prejudicados.

Muito se tem discorrido sobre a falta de médicos no Serviço Nacional de Saúde e sobre os números de novas contratações que não batem certo.

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Muito se tem discorrido sobre a falta de médicos no Serviço Nacional de Saúde e sobre os números de novas contratações que não batem certo.

Terão sido contratados por este governo, até hoje, os 3683 médicos indicados no site da ACSS, segundo o jornal PÚBLICO? Ou contratados de março de 2015 a março deste ano os 2795 médicos indicados pelo ministro da Saúde em abril, na comissão parlamentar de saúde?

Ou ambos os números estarão certos, tendo o Ministério da Saúde contratado para o SNS 888 médicos de março a agosto deste ano?

Uma coisa é certa. Os médicos contratados pelo SNS continuam a não ser suficientes para assegurar um dos pilares de qualquer sistema de saúde: os serviços de urgência.

Por isso, a maior parte dos hospitais continua a contratar médicos prestadores de serviços (também chamados “tarefeiros”) para assegurar o atendimento urgente à população.

Como os hospitais são financiados pelo governo de acordo com o número de episódios de urgência que asseguram e penalizados pelos tempos de espera nessas urgências, é de esperar que tentem, pelo menos, evitar que os seus tarefeiros abandonem o serviço de urgência.

Mas não! Ao contrário do que seria de esperar, os hospitais públicos foram, este ano, obrigados pelo ministério a descer em 12% a remuneração dos seus médicos tarefeiros e, portanto, a “fazer mais com menos”!

Como é possível um governo de esquerda, tradicionalmente mais preocupada com a justiça laboral, descer em 12% a remuneração destes trabalhadores, quando se verificaram aumentos reais dos salários de toda a função pública?

Num mercado como este, sujeito à lei da oferta e da procura, uma boa parte dos tarefeiros abandonaram os serviços de urgência dos hospitais públicos e foram trabalhar para outros sítios – alguns deles para hospitais privados -, deixando os hospitais públicos ainda mais depauperados de capital humano e com menor capacidade de atendimento à população.

Ao mesmo tempo, o governo tenta passar a ideia de que uma boa parte das urgências são falsas urgências. Como médica, não sei o que são falsas urgências. Quando um doente procura assistência num serviço de urgência apenas sabe que se sente mal. Para ele, a situação é urgente. A gravidade do seu estado só pode ser determinada depois da observação médica.

Poderá fazer algum sentido que os doentes procurem o atendimento urgente no seu centro de saúde – as modernas unidades de saúde familiares, USF - como é incentivado pelo ministério. Mas os médicos de família têm vagas para um número muito limitado de “consultas do dia” e, frequentemente, os doentes esperam longas horas nos centros de saúde por uma consulta que acabam por não conseguir.

Acresce que a maior parte dos centros de saúde tem um acesso urgente muito reduzido a exames complementares de diagnóstico. E nenhum médico consciente pode afirmar que a boa prática da medicina dispensa análises, radiografias ou eletrocardiogramas na maioria dos casos de doença aguda.

Para além disso, a moderna gestão das unidades de saúde familiares penaliza, precisamente, os gastos de prescrição, incentivando os médicos a cortar todo o tipo de despesas. Estes cortes não se refletem apenas em evitar prescrever exames complementares de diagnóstico. Estendem-se aos cortes na prescrição de medicamentos. 

Os medicamentos inovadores, mais caros, para os quais não existem genéricos, mas que trazem benefícios clínicos sobejamente demonstrados, muito dificilmente são prescritos pelos médicos de família porque isso significa mais gastos e menos lucro para as USF em que trabalham.

Enquanto o financiamento hospitalar e dos cuidados de saúde primários não contemplar incentivos à excelência na prática da medicina – incluindo indicadores de melhoria da saúde dos indivíduos que neles são tratados perante os quais a gestão também responda – continuaremos a ter serviços de urgência com falta de médicos e doentes prejudicados na qualidade dos serviços de saúde que recebem.

Nada disto se aplica, naturalmente, aos doentes com mais posses e que têm acesso a hospitais privados. Nos hospitais privados, pelo contrário, não há restrição do número de consultas nem de exames complementares de diagnóstico e a prescrição de fármacos inovadores não é limitada.

É esta diferença no acesso à saúde que o governo e o ministério da saúde pretendem manter? Que o SNS sirva apenas quem não tem outra alternativa?