Desmemória e fascismo

O apagamento da memória ameríndia que o Museu Nacional do Brasil conservava prolonga a “história de apagamentos e silenciamentos” que tem sido a história do Brasil.

Ardeu tudo. Ou quase tudo. O quinto maior acervo museológico do mundo, reunido na mais antiga instituição científica brasileira, 20 milhões de itens classificados; duas bibliotecas inteiras, meio milhão de obras, 2400 das quais classificadas como raras. As coleções de Etnologia reuniam objetos únicos que, ainda hoje se diz na página online do Museu, “mostram a riqueza da cultura indígena [e da] cultura afro-brasileira”. Perdeu-se definitivamente um arquivo oral com gravações de conversas, cantos e rituais de dezenas de sociedades indígenas, muitas feitas durante a década de 1960, e que não haviam sido digitalizadas. Uma parte essencial da memória histórica das nações ameríndias anteriores à colonização portuguesa - já de si completamente desvalorizada por uma cultura hegemónica de matriz colonial que, como acontece em quase todas as Américas, imagina o Brasil como uma nação ocidental “resgatada” à “incivilização” indígena - está reduzida a fumo e cinzas. Centro de investigação para muitos arqueólogos, o que resta do Museu transformou-se agora, ele mesmo, num sítio arqueológico...

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Ardeu tudo. Ou quase tudo. O quinto maior acervo museológico do mundo, reunido na mais antiga instituição científica brasileira, 20 milhões de itens classificados; duas bibliotecas inteiras, meio milhão de obras, 2400 das quais classificadas como raras. As coleções de Etnologia reuniam objetos únicos que, ainda hoje se diz na página online do Museu, “mostram a riqueza da cultura indígena [e da] cultura afro-brasileira”. Perdeu-se definitivamente um arquivo oral com gravações de conversas, cantos e rituais de dezenas de sociedades indígenas, muitas feitas durante a década de 1960, e que não haviam sido digitalizadas. Uma parte essencial da memória histórica das nações ameríndias anteriores à colonização portuguesa - já de si completamente desvalorizada por uma cultura hegemónica de matriz colonial que, como acontece em quase todas as Américas, imagina o Brasil como uma nação ocidental “resgatada” à “incivilização” indígena - está reduzida a fumo e cinzas. Centro de investigação para muitos arqueólogos, o que resta do Museu transformou-se agora, ele mesmo, num sítio arqueológico...

O caso não é único. Só nesta década, e só em São Paulo, quatro outros grandes acervos sofreram incêndios: o Instituto Butantan (2010), o Memorial da América Latina (2013), o Museu da Língua Portuguesa (2015), a Cinemateca Brasileira (2016). Em todos os casos, é nos cortes orçamentais das políticas liberais que é inevitável buscar responsabilidades. Já de si sistematicamente insuficiente nas últimas décadas, a quebra brutal da dotação financeira que o Governo Temer dedicava à Universidade que fazia a gestão do Museu veio confirmar os piores receios. “Os fios desencapados [que podem ter provocado um curtocircuito] estão nos gabinetes do Palácio do Planalto e do Ministério da Educação. O ministro, ninguém sabe quem é, nomeado a título de barganha em troca de votos no Congresso. (...) Do Museu Nacional, um património da humanidade, só ouviu falar depois da tragédia do incêndio.” (Álvaro Caldas, Jornal do Brasil, 7.9.2018) “O Brasil é um país onde governar é criar desertos. (...) Destrói-se a natureza e agora está-se destruindo a cultura, criando-se desertos no tempo. Estamos perdendo com isso parte da história do Brasil e do mundo”, dizia há dias Eduardo Viveiros de Castro ao PÚBLICO (4.9.2018), que receia agora que “se tente vender o canto de sereia da privatização dos museus, retirá-lo da universidade, transformá-lo numa fundação privada”.

É arrepiadoramente simbólico que tudo isto ocorra no momento em que o Brasil pode estar a semanas de ver eleito um presidente fascista como Jair Bolsonaro – sobretudo agora que, vítima de uma facada de um homem psicologicamente transtornado, pode vir a beneficiar do mesmo efeito que Hitler obteve com o incêndio do Reichstag dias antes das eleições de 1933. Duplamente simbólico: por um lado, Bolsonaro assegura que entrou na corrida à Presidência “por uma missão de Deus” (El País, Brasil, 6.9.2018), a mesma que o seu atacante reclama para si; por outro, perante o incêndio Museu Nacional, Bolsonaro declarou que nada mais poderia ser feito: “se não há dinheiro, paciência”. Paciência, mesmo. Porque este é o racista (e o misógino, e o homófobo, e o anticomunista) que tem o apoio de empresários do agronegócio como Luiz Antonio Nabhan Garcia, que espera que Bolsonaro ponha na ordem “essa gente da Fundação Nacional do Índio, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, do Ministério Público, que não respeita a propriedade privada” (El País, Brasil, 2.9.2018). Por outras palavras, o homem que homenageou o torturador de Dilma Rousseff ao votar o impeachment, que promete mandar “fuzilar os petralhas” (ou seja, os dirigentes do PT), “dar um pé no traseiro do comunismo”, restabelecer a pena de morte e, no país com mais homicídios per capita no mundo, liberalizar o porte de arma, é também aquele que de quem se espera que acabe com “essa politicagem de Direitos Humanos”, expressão que ele usa para designar as políticas de defesa dos direitos dos povos indígenas.

O apagamento da memória ameríndia que o Museu Nacional do Brasil conservava prolonga a “história de apagamentos e silenciamentos” que tem sido a história do Brasil. “Um povo que não conhece seu passado, que não compreende suas referências e suas origens, perde a chance de reparar seus erros históricos e não é capaz de trilhar seu caminho a um futuro de respeito aos direitos humanos e à democracia.” (Rogério Sottilli, ex-secretário de Direitos Humanos da prefeitura de São Paulo, cartacapital.com.br, 5.9.2018)