As surpresas que a Líbia ainda nos reserva

A Líbia já mostrou o impacto das suas guerras civis sobre a Europa. A crise migratória é um dos mais fortes factores da viragem política e ideológica que varre o Continente.

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Anuncia-se um novo período de tempestades na Líbia — se tal é possível conceber. Que importa a Líbia? Os europeus desaprenderam a geografia. O Mediterrâneo não é um “muro que nos separa e defende”. É o mar que une a Europa ao Grande Magrebe. A Líbia é uma ponte, não é uma barreira. Demonstração: a Líbia foi o epicentro de uma “migração bíblica” cujo impacto é muito maior do que a crise migratória. É um dos factores desencadearam a actual viragem política e ideológica na Europa. Os ocidentais também pouco aprendem com a História. Quase tudo o que fizeram na Líbia desde 2011 revela ignorância histórica. É evidente a dificuldade de resolver a crise líbia, um puzzle quase insolúvel. Mas tal não justifica que líderes europeus procedam como “bombeiros pirómanos”.

Previnem analistas: as múltiplas guerras civis líbias, que nunca se apagaram, podem reacender-se em grande escala se for avante a ideia de fazer eleições presidenciais e legislativas em Dezembro, na completa ausência de instituições — da polícia aos tribunais — no meio de muitas armas e num clima de instabilidade e insegurança. Não há ainda lei eleitoral e deveria haver um referendo prévio sobre a Constituição. A França é o maior defensor de “eleições já” e a Itália o seu principal adversário. Ninguém é inocente: estão em jogo o petróleo e a geopolítica do Norte de África.

Há sinais de que as centenas de milícias, que detêm o poder real, se preparam para uma corrida à conquista de posições: os últimos combates em Trípoli (na foto), com “apenas” 50 mortos, são o mais recente aviso (ver PÚBLICO de 5 de Setembro).

A lógica tribal

“Em circunstâncias normais, a convocação de eleições seria sinal de uma pujante democracia”, escreve o analista líbio Emadeddin Zahri Muntasser. “A razão desta corrida às eleições é simples. As actuais elites políticas desejam manter a sua vantagem sobre os outros candidatos.” E não só: “A maioria dos políticos líbios que apelam a eleições tem ligações a poderes estrangeiros como o Egipto, a Rússia ou os Emirados Árabes Unidos. (...) Paradoxalmente, fazer eleições neste momento ajudará a consolidar as instituições antidemocráticas.”

Os que detêm poder e controlam os recursos tudo farão para manter as suas vantagens. Os outros tudo farão para armadilhar o processo eleitoral e mudar o statu quo, “já que lhes será mais fácil conquistar mais poder e recursos num clima de instabilidade”, escrevem Rhiannon Smith e Jason Pack, do grupo britânico Libya Analysis. Resumem assim a equação: “Para os líbios, a questão-chave não é ‘quem deverá ser o nosso Presidente’ mas saber ‘como irão ser distribuídos os vastos recursos do país’.”

É inevitável uma pergunta: quem manda na Líbia? Não há um governo, há dois, em Trípoli (Oeste) e em Tobruk (Leste). E nenhum deles governa. Por trás deles estão duas coligações militares: a do general Khalifa Haftar, que domina a Cirenaica (Oeste), e a coligação Alba Líbia, que domina o eixo Trípoli-Misurata. Sem negar o poderio de Haftar ou a “legitimidade internacional” do primeiro-ministro Fayez al-Sarraj em Trípoli, a verdadeira força está nas milícias locais que compõem as duas coligações de geometria variável.

A política tribal assenta no controlo dos recursos. O domínio dos ministérios da Defesa e do Interior, do banco nacional, da empresa pública petrolífera (NOC), dos portos e aeroportos ou dos terminais petrolíferos é fonte de poder e riqueza e motivo de sucessivos combates.

Por trás do fenómeno não está apenas a anarquia. Está uma cultura secular. As tribos “fazem pela vida”, lutam pela sobrevivência. A queda abrupta da renda do petróleo devida ao caos abalou os compromissos tradicionais, tornando-se um novo factor de guerra civil.

E para lá do papel de plataforma das migrações africanas, a Líbia encerra sempre a ameaça de base terrorista e de abjecto mercado de tráfico de vidas humanas.

Um país sem Estado

A Líbia nunca foi um país unificado: a Tripolitânia e a Cirenaica têm histórias divergentes. E nunca foi um Estado. É um vasto mosaico de tribos, mais de uma centena. A identidade tribal prevalece sobre a débil consciência nacional. Observa o diplomata e jornalista italiano Sergio Romano: “Nem o império otomano, nem a administração colonial italiana, nem o reino desejado pelos britânicos em 1951, nem a extravagante ‘terceira via’ de Khadafi conseguiram unificar uma constelação de tribos que jamais renunciaram à sua identidade e às suas prerrogativas.”

A primeira “revolução” aconteceu em 1958-59 com a descoberta do petróleo no Golfo de Sidra e na Cirenaica. Um dos países mais pobres de África passa a poder viver da renda petrolífera. A distribuição da renda será, ao lado do aparelho repressivo, o melhor instrumento do domínio absoluto de Khadafi, o meio de “dividir para reinar”, favorecendo ou punindo tribos e regiões através da distribuição das benesses. Ele conhecia o país. Na incapacidade de o unificar, decretou a “extinção do estado”, inventando um “estado das massas”, a Jamahiriya. As embrionárias instituições estatais herdadas da monarquia foram apagadas.

Previu em Fevereiro de 2011 o americano Dirk Vandewalle, historiador da Líbia contemporânea: “Se Khadafi desaparecer, haverá um enorme vácuo, não apenas político mas económico e social. Não há quaisquer grupos organizados na sociedade líbia.” A queda de Khadafi foi definida como um “sucesso catastrófico”.

A anarquia reinante leva a que a Líbia seja uma virtual base terrorista e um abjecto mercado de tráfico de vidas humanas.

Tudo passa pelo petróleo

O puzzle líbio tem outros actores. Se a Tunísia e a Argélia apostam no diálogo, o Egipto, os Emirados Árabes Unidos, a Rússia e a França apoiam e armam o general Hatfar. A Turquia, o Qatar e a Itália apoiam Trípoli e Al-Sarraj. Os americanos bombardeiam o Daesh. A UE é a “grande ausente”. A Europa está paralisada pelo conflito entre Roma e Paris. Os franceses da Total e da GDF-Suez querem dominar o petróleo e o gás líbios. Para os italianos, manter a hegemonia da ENI é uma prioridade nacional. Paris olha ainda para a posição fulcral da Líbia junto da sua área de influência no Mali ou no Chade.

Negociar apenas com Haftar e Al-Sarraj, sem ao mesmo tempo obter um acordo com tribos e cidades, é tempo perdido, pois estas têm interesses próprios e as milícias mudam de campo com facilidade. Nenhum acordo terá sucesso sem o envolvimento da realidade tribal, a base da sociedade líbia. Resta o quebra-cabeças: a estabilização — e não eleições — é a condição necessária para um acordo de distribuição equitativa da renda petrolífera, o que, por sua vez, é condição para a retomada da plena exploração do petróleo. Não depende só dos líbios. Enquanto as potências estrangeiras persistirem nas suas “guerras por procuração”, prosseguirá a luta entre facções pelo controlo das jazidas e dos terminais, numa engrenagem sem fim. Na Líbia, o futuro passa pelo petróleo.

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