Cocorico, o charme do Porto num banho de alma francês

Património, mar e vinho são pedras-de-toque do grupo francês Millésime, que tem no Porto a sua estreia internacional e aí cruza duas culturas em prazeres simples como quartos com espaços de banho distintivos e um restaurante de refinada cuisine.

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Em 2015, La Villa Pastel, na comuna francesa de Arcachon, foi a primeira unidade do grupo Millésime. Logo depois seguiu-se outra em Bordéus e, entretanto, também em Talence, Montignac, Reims e La Baule, antes de Léognan e Paris. Em todos esses espaços, Alexandra Patek e Philllipe Monnin quiseram dar forma a um conceito de alojamento que tem por base três grandes pilares: o estilo de vida francês, a recuperação de edificado com valor patrimonial e a proximidade ao mar e à cultura do vinho como dois prazeres que sempre ajudaram à joie de vivre. Os fundadores da marca defendem que a Millésime é, “antes de tudo, uma aventura humana” e, quando o conceito subjacente aos seus projectos se mostrou suficientemente testado em França, foi o Porto que escolheram para morada da sua primeira unidade no estrangeiro. “A escolha deste local era evidente, pois o grupo está estabelecido em zonas vínicas e, a esse nível, o Porto é uma das regiões mais famosas do mundo”, admite Philippe Monnin.

Perto da marginal por onde o rio une o oceano Atlântico aos socalcos vinhateiros do Douro, a Rua Duque de Loulé revelou assim à Millésime um edifício centenário ajustado aos seus fins. O prédio já antes recebia hóspedes, mas foi sujeito a uma reabilitação de três milhões de euros e transformou-se de acordo com a visão mediterrânica idealizada para o local por Marie-Christine Lecouen, directora artística do grupo. Se o símbolo de Portugal é o Galo de Barcelos, a opção pelo “Cocorico” com que os franceses se referem ao cantar do galo foi fácil e depois houve apenas que encontrar a paleta de tons, móveis e acessórios que melhor traduzisse o que Sara Faria, directora da casa, descreve como “um cruzamento cultural entre os dois países”.

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No sentido mais darwiniano da expressão, isso começa por notar-se na referência ao amor: nenhum dos quartos do hotel é identificado por números e todos adoptam o nome de casais constituídos por amantes dos dois países, como Catarina e Benoit, José e Joséphine, Capucine e Luís. O resto faz-se depois de detalhes, como as cortinas de linho nos azuis do mar e nos ocres e vináceas do Verão, videiras e laranjeiras-anãs envasadas em vimes, secretárias resgatadas a antiquários portugueses e franceses, azulejos lusos retirados ao edifício antigo para decorarem as fontes do novo terraço e gradis de ferro negro recuperados com perícia por artesãos de ambas as nacionalidades. Nas escadas, nos soalhos e nos altíssimos rodapés, todas as madeiras foram restauradas; nos tectos, placas falsas removidas para libertar estucaria elegante com mais de 100 anos e quase intacta, às vezes com oito frisos sucessivos de diferente desenho. Mas se em Portugal toda a ambição se pode resumir no desejo de viver “à grande e à francesa”, os melhores quartos da Cocorico concretizam essa aspiração em coisas simples e raramente acessíveis: portadas generosas de luz natural abundante, carinhosos pequenos-almoços servidos na cama e, sobretudo, como verdadeiras pièces de résistance, autênticas salas de banho em dimensões que ultrapassam as de muitas assoalhadas do normal edificado português. Há banheiras em ferro fundido sem encastre e outras enquadradas por janelas para o corredor do quarto, há poltronas de baloiço mesmo ao lado para conversas confortáveis em registo seco-molhado, há cabinas enormes com dois duches bem espaçados para intimismos sem apertos. No topo, a pouca distância do tecto, há ainda painéis de ferro e vidro colorido a contornar a área de banhos, como vitrais de uma catedral a impor maior apreço pela inesperada dádiva.

Cosmética, culinária francesa e cocktails a qualquer hora

As duas entradas da nova guest house da Invicta permitem aceder a dois outros negócios do universo Millésime: a comercialização de marcas próprias de produtos gastronómicos e cosmética bio, e a restauração francesa com recurso a ingredientes portugueses e, sempre que possível, de produtores locais.

No que se refere à loja, essa funciona na própria recepção do hotel e disponibiliza iguarias da marca Millésime Maison, como conservas de sardinha, tapenade de azeitona preta ou verde, rillete de coelho e compota de pêra oriental ou maçã-pimenta, dando também a conhecer produtos de beleza da marca Éc(h)o, com ingredientes de origem 100% orgânica e certificados com o selo Nature & Progrès. Êxitos já confirmados da marca são o seu desmaquilhante de aloé vera e baunilha, o creme purificante de rosa e o hidratante de chantilly de karité.

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É no restaurante Cocorico, contudo, que a experiência Millésime realmente se completa. Visualmente, o espaço procura replicar uma brasserie ao melhor nível parisiense, com mesas de bancos dispostos como num comboio da linha Orient Express, divisórias de vidro para um ambiente luminoso, cores e azulejos vibrantes, e um terraço de toque rústico com figuras de galos, um fogão a lenha, toldo de verga sobre videiras e várias mesas de ferro fundido já com anos de história. Se a carta de vinhos se faz exclusivamente com marcas do Douro, a preços entre os 12 e os 114 euros por garrafa, já a restante oferta, com excepção para o pão au point acabado de cozer no hotel, integra apenas incontornáveis da cozinha burguesa francesa: nas entradas, por exemplo, caracóis em manteiga de chouriço e salsa como na Borgonha, ou sopa fria com sorbet de tomate e manjericão sobre chantilly de queijo de cabra como na Provença; nas opções de peixe, polvo grelhado com esmagada rústica de batatas com aioli, também à moda provençal, ou risotto de lavagante com arroz vermelho da região de Camargue numa emulsão de crustáceos e açafrão; nas carnes, o Sudeste e o Sudoeste francês, respectivamente no frango do campo assado com mostarda, orégãos e batata gratinada, e no magret de pato assado com espargos verdes, estragão e batatas Dauphine.

A autoria da carta cabe à chef executiva Flora Mikula, que assume a orientação gastronómica dos nove restaurante do grupo Millésime, e a sua confecção no Porto está entregue a César Veloso, que aí aplica a experiência já acumulada em cidades como Lausanne, Paris, Córsega e Dijon. O chef português defende que o cliente luso se tornou “mais aberto a experiências e à degustação”, mas, ainda assim, Sara Faria realça: “Queremos que toda a gente retire prazer da sua refeição, portanto também temos um prato Éc(h)o, vegetariano, e, se as crianças preferirem um hambúrguer, basta que nos peçam, que a cozinha dará resposta.” O mesmo se aplica, aliás, aos cocktails que, podendo acompanhar-se com uma tábua de charcutaria e queijos franceses ou com um croque-monsier de fiambre trufado, se servem a qualquer hora do dia, com o bartender sempre disponível para concretizar desejos não reflectidos na carta.

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Na despedida, o difícil conflito das sobremesas: crepes Suzette flamejados no licor de laranja Grand Marnier, um mil-folhas com morangos, framboesas e creme de amêndoa e baunilha do Taiti, ou um macaron com creme de chocolate branco e limão, morango e gelado de Nutella? Perante tanta hesitação, ou se peca sem remorsos ou há que fazer opções. Como em tudo, c’est la vie!

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