As filhas adoptivas de um casamento feliz

É como um rosário com duas mil contas. São as Lofoten, um sinal de exotismo no Norte da Noruega, onde o clima é benigno e o mar e as montanhas convivem para transformar as ilhas do arquipélago num postal de cores bem definidas.

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O ferry, partindo de Bodø, sulcava as águas há mais de meia hora quando, com Mistérios, de Knut Hamsun, nas mãos, não resisti ao sono que já ia cabeceando, embalado por aquele berço gigante que prometia, daí a umas horas, levar-me até uma dessas contas de um rosário, desse arquipélago de mais de duas mil ilhas. Não me recordo de ter sonhado nessa antecâmara da morte que é o sono. Mas lembro-me de ter imaginado, momentos antes, a minha chegada, recebido pelas casinhas que se debruçam sobre o mar como varandas, nas suas cores de sangue, tão pitorescas, com as montanhas recortando-se no pano de fundo, com o mar, como se umas e outro, as montanhas e o mar, num casamento bem sucedido, tivessem adoptado essas duas mil filhas para, juntos, viverem numa eterna cumplicidade.

Era a cor das casas que mais me intrigava.

Um dia, cansado de dúvidas e tendo escutado diferentes teses, perguntei a Caroline Hömke a razão pela qual a maior parte das casas eram pintadas de vermelho — há outras cores, amarelo, azul, mas nenhuma delas produz tão nítido contraste com as águas de um azul por vezes turquesa e as montanhas que, no Inverno, vestidas de branco, caem a pique sobre o mar.

- Pintando-as de vermelho, o pescador tem mais facilidade em vê-las à distância. Tanto quanto sei, usam essa cor, uma mistura de sangue ou ferro com óleo de figado de bacalhau, por ser a mais barata. O proprietário da empresa de pesca da aldeia, sendo rico, preferia ter uma casa maior no centro, numa zona mais elevada em relação ao nível das águas do mar, e, uma vez que tinha dinheiro suficiente para comprar tinta de outra cor, optava pelo branco, admite Caroline Hömke, uma das responsáveis do posto de turismo de Svolvær.

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Sónia Arrepia

As rorbuer (rorbu no singular), muitas delas restauradas para serem convertidas em alojamentos turísticos, revelam uma aparência pobre e humilde, sem pretensiosismos, mas escondem uma história rica e quase milenar — foi no início do século XII que o rei Eystein I, também conhecido por Eystein Magnusson, mandou construir essas cabanas e uma igreja na aldeia de Vågan.

Se, há quase mil anos, o sector das pescas das Lofoten era já de importância considerável, e as rorbuer uma forma de acomodação bem estabelecida, em finais do século XVIII, com o boom da indústria, o parlamento norueguês não tardou a aceitar, em acta de 1816, a venda dos terrenos sobre os quais foram erguidas as aldeias de pescadores, muitas delas adquiridas nessa altura por ricos proprietários e armadores.

Num curto espaço de tempo, o número de cabanas aumentou drasticamente para satisfazer a procura, cada vez mais constante, dos pescadores que visitavam as Lofoten durante a temporada da pesca do bacalhau. Eram, por esse tempo, rorbuer de dimensões reduzidas, com camas onde dormiam dois ou três homens (uns com a cabeça repousada na cabeceira, outros com ela para os pés), iluminadas por velas ou pelas chamas de um fogo a céu aberto e, até finais do século XIX (em 1896 estavam registadas 2671 cabanas), sem fogão e sem janelas. Mas eram, mesmo assim, órfãs de tudo, um agradável refúgio para os homens esquecerem, ainda que por horas, o rigor do Inverno, tão apetecíveis e acolhedoras após dias e meses de trabalho árduo.

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Espen Mortensen

Os chifres do bode

Naquela manhã, de uma luz tão pura, reconheço em mim manifestações pueris quando observo, com visível deleite, a paisagem dramática que envolve Svolvær, na ilha de Austvågøy, a mesma onde se encontra situado o fiorde de Troll, palco dos ogres escandinavos e com apenas dois quilómetros de comprimento e muito estreito, pelo menos na entrada.

Capital regional, maior cidade das Lofoten, a despeito de não abrigar nem sequer cinco mil almas, Svolvær prende a atenção do viandante pelo cenário magnificente que a abraça, independentemente do lugar em que se encontra. Como sentinela, uma entre tantas outras, tem a popular Svolværgeita, um pináculo escalado pela primeira vez em 1910 que se ergue a 150 metros de altura e cujo acesso não é fácil para principiantes. Uma vez no topo do bode, como é conhecido, os mais corajosos saltam de um chifre para o outro, podendo contemplar, se assim o desejarem, um cemitério aos pés da montanha.

Na cidade, grande se comparada com a maior parte dos espaços urbanos das Lofoten, habitadas por cerca de 25 mil pessoas, também as galerias de arte e os museus atraem os olhares dos turistas, entre eles o Krigsminnemuseum, o museu da guerra, com uma colecção de artefactos que incluem, entre outros, uma lâmpada do couraçado Tirpitz e uma mala de Eva Braun, a companheira de Adolf Hitler, numa interessante viagem por esses tempos conturbados da história. 

Calculo a distância e percebo que pouco mais de 130 quilómetros me separam de Å, na ponta sul da ilha de Moskenes. A relativa proximidade é mais uma razão para levar os meus passos até essa aldeia (originalmente uma quinta) de que apenas conhecia fotografias que me pareciam sempre trabalhadas, na luz e no contraste. Mas quando já lhe sinto o cheiro, umas três horas depois de deixar para trás Svolvær, não me parece tão irreal, todo o conjunto dá ares de postal ilustrado, desses que já quase ninguém escreve para familiares ou amigos.

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DR

As suas casinhas, as rorbuer, atiram-se sobre as águas a esta hora tranquilas, as montanhas preenchem a maior parte da moldura, o bacalhau seca aqui e acolá, em verdadeiras catedrais de madeira. Bem preservada e fiel às suas tradições, apesar do impacto que o turismo começa a ter entre as suas gentes, Å oferece uma visão encantadora de algumas das suas casas do século XIX, bem como um interessante museu de pesca e, aqui e ali, barcos antigos, uma padaria que nos remete para esse período, armazéns, todo um conjunto agradável para plantar os olhos durante umas horas, num ritmo de procissão, sem pressas.

Não muito longe, caminhando um pouco, do topo de uma colina a vista sobre a ilha de Værøy estimula a contemplação. “Ali, o vasto leito das águas, fendido e suturado por mil correntes desencontradas, explodiu subitamente numa frenética convulsão — arfando, borbulhando e assobiando — girando em gigantescos e incontáveis turbilhões, todos eles rodopiando e mergulhando para leste com uma rapidez que a água nunca atinge em lado algum a não ser em grandes cataratas.”

Værøy é a ilha de Vurrgh no livro de Edgar Allan Poe, Uma descida no Maelström, uma história inspirada nesse famoso redemoinho que é o Moskstraumen e que tanto seduziu, também, Júlio Verne. 

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Loeken Baard

Reine, a bela acordada

Regresso à estrada, à E10, agora cruzada no sentido inverso, na direcção de Reine. Não são mais de dez quilómetros desde Å mas a força da natureza, convidando a admirá-la, retira atenção à condução e é um constante apelo para mais uma paragem, retardando a chegada a esse lugar que já foi considerado o mais bonito do mundo.

O estatuto parece-me exagerado, mas a verdade é que Reine cativa desde o primeiro instante em que se dá a conhecer. Decido ficar uns dias por aqui: um ocupo-o a subir ao Reinebringen, a uma altura de 450 metros, com uma panorâmica difícil de descrever sobre Reine e grande parte do arquipélago; no outro, apanho um ferry que me leva, ao fim de 15 minutos, até à pequena povoação de Kjerkfjorden, seguida de uma caminhada de uma hora até à praia de Horseid, com as suas areias brancas vigiadas por sumptuosas torres de granito; ao terceiro dia, volto a apanhar o ferry da manhã, agora com destino à aldeia de Vindstad e, percorrendo um trilho ao longo do fiorde, chego em pouco tempo à praia Bunes.

E por ali fico, sonhando, reflectindo: será que um turista, chegando ignorante, de olhos vendados, a uma das praias das Lofoten, seria capaz de responder acertadamente à pergunta “em que país se encontra”, questiono — e tenho dúvidas.

Polinésia, Seychelles, algum lugar no Mediterrâneo, na Grécia. Dificilmente a Noruega, para mais a uns escassos cem quilómetros do Círculo Polar Árctico.

Perdido nestes pensamentos, quase esqueço que são horas de apanhar o ferry de volta a Reine, para a admirar pela noite dentro, tão silenciosa e tão cheia de luzes que rebrilham nas águas.

Todos os nomes são sugestivos, remetem-me para os vikings, Austvågøy, Gimsøy, Flakstadøy, Vestvågøy, não soam melodiosos mas vivem numa quietude que só é abalada de quando em quando. Não posso falar de todas as ilhas, de todos os lugarejos, de todas as emoções. Entrego-me a Henningsvær, a Veneza das Lofoten, preservada e tão cheia de vida, quase uma irmã gémea de Reine, com as suas casinhas coloridas decorando o porto abrigado pelas montanhas. Para manter este carácter, Henningsvær beneficiou do facto de apenas ter ficado ligada, através de uma ponte, à ilha de  Austvågøy em 1981, evitando, dessa forma, ser afectada pela era do betão, nas décadas de 60 e 70 do século passado, anos que correspondem à transformação estética (ou à inestética) de algumas aldeias e vilas das Lofoten.

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Numa manhã com escassas nuvens, subo ao Glomtinden, a pouco mais de 400 metros, alcanço com os olhos tudo à minha volta.

Sinto-me satisfeito. Por agora.

O ferry está de partida. Instalo-me e prossigo a leitura de Mistérios, de Knut Hamsun, sempre com as imagens das Lofoten tão presentes na memória. “E, logo a seguir, deixas-te flutuar calmamente em ventos e ondas, tornando-te alvo de torrentes idiotas de pensamento. Deixa a mente divagar, sabe tão bem ceder, parar de lutar. E por que razão lutar? Um viajante que deixou de viajar não deveria ter direito a fazer o que quer nos seus últimos momentos? Sim ou não? Ponto final. E fazes o que o teu espírito te manda.”

A mim, o espírito, depois de ver as Lofoten, essas filhas adoptivas de um casamento feliz entre mar e montanha, manda-me viajar.