Uma história queer do nosso tempo

É uma história exemplar que concentra, de forma abreviada, algumas figurações complexas do nosso tempo. Reduzida a uma morfologia esquemática, é uma história que se repete desde a fundação do mundo: um professor apaixona-se pelo aluno ou, pelo menos, tem uma grande atracção por ele e tenta envolvê-lo nessa força, deixando vestígios dos seus avanços: mensagens, telefonemas, sms’s. Mas contada nos seus pormenores, ela revela uma enorme complexidade e suscita questões que só no nosso tempo começaram a existir porque antes nem se tinham dado as condições de possibilidade da sua formulação. Diga-se, então, que o professor em causa é uma mulher que se chama Avital Ronell, tem 66 anos, ocupa uma posição de prestígio na Universidade de Nova Iorque, é filósofa, theorist, feminista, lésbica, autora de livros que atravessaram com algum impacto o Atlântico, até porque se inscrevem no domínio da chamada “filosofia continental”  (foi amiga e discípula de Derrida, o que, para alguns, é como se pertencesse a um gang); e o aluno chama-se Nimrod Reitman, tem 34 anos e é gay. Acusou a professora de assédio sexual, de perseguição e de retaliação (sob a forma de sabotagem das tentativas que este fez para arranjar emprego), desencadeando assim uma investigação pedida pela universidade que levou à suspensão de todas as actividades académicas da professora, por um ano. Entretanto, o aluno moveu um processo à universidade e à professora, exigindo compensações avultados pelos malefícios que lhe causaram. O caso foi tornado público quando a investigação ainda estava sob segredo e não havia ainda acesso a nenhuma documentação: 51 figuras internacionais de grande prestígio, a maior parte proveniente dos meios académicos, assinaram uma carta, datada de 11 de Maio, em que declarava o seu apoio a Avital Ronell, usando como caução a autoridade e a importância desta mulher, enquanto filósofa. A carta, assinada, entre outros, por Judith Butler, foi acusada de ser um documento incompatível com as ideias que os seus assinantes sempre defenderam. No limite, tratar-se-ia de fazer da vítima o perpetrador e vice-versa. O New York Times, a 13 de Agosto, intitulava assim um artigo sobre este caso: “What Happens to #MeToo When a Feministe Is the Accused?”. Do lado dos estudantes, uma única voz veio corroborar a acusação: uma mulher transgender, Andrea Long Chu, que foi assistente de Avital Ronell durante um semestre, escreveu num tweet que achava as alegações do estudante plausíveis.

Há, em toda esta história, uma excepcional densidade de elementos queer. É difícil ver numa história de alegado assédio sexual de um jovem gay por uma mulher lésbica a inversão pura e simples da violência histórica infligida à mulher pelo poder sexual masculino. Assim como é difícil ver aqui aqueles monstros (tão representados na literatura, no cinema e nas mitologias porno) de uma feminilidade caracterizada por uma exigência ilimitada de prazer sexual. Por outro lado, este “homem-objecto” também não é o pólo simétrico da antiga “mulher-objecto”. Esta, no fundo, era soberana, enquanto este é um sujeito despojado, nu, órfão do desejo. Nem sujeito nem verdadeiramente objecto. Esta história de assédio sexual que tem como protagonista Avital Ronell mostra, nos seus traços grotescos de caricatura, que não há hoje lugar para um pensamento — e para uma prática — da sedução. Porque na sedução tudo parte do objecto, é o objecto que seduz e o privilégio do sujeito inverte-se. Se a estratégia retórica da sedução é anulada, tudo passa a ser literalização da violência sexual. Nestas circunstâncias, toda literatura do amor e da paixão é uma coisa do passado.

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