A Netflix à caça do velho Leão

Roma, de Alfonso Cuarón, é considerado favorito na 75.ª edição de Veneza. Se isso acontecer, será uma primeira vez para a plataforma de streaming. Que ainda precisa desta caução do “velho” mundo do cinema. Mas o “novo” está já aí.

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Desta vez, não houve assobios à Netflix e houve três oportunidades, na selecção competitiva de Veneza, para isso acontecer: nos genéricos de The Ballad of Buster Scruggs, dos irmãos Coen, de Roma, de Alfonso Cuarón, e de 21 July, de Paul Greengrass, quando surgia a letra escarlate, N. Em Cannes 2017, a Netflix foi o monstro e os apupos perante os genéricos de Okja, de Bong Joon Hoo, e The Meyerowiitz Stories, de Noah Baumbach, ofenderam a empresa de streaming de Ted Sarandos. Mas a ofensiva estava declarada desde o primeiro dia: para o presidente do júri Pedro Almodóvar seria paradoxal que uma Palma de Ouro fosse para um filme sem distribuição em sala. Eis o que aconteceu em 2018 na Croisette: a Netflix foi oficialmente excluída da competição devido à pressão dos distribuidores franceses contra a inclusão no concurso de um serviço de streaming que não trabalha com convicção a estreia em sala, e excluiu-se ela própria das outras secções em que podia participar. 

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Desta vez, não houve assobios à Netflix e houve três oportunidades, na selecção competitiva de Veneza, para isso acontecer: nos genéricos de The Ballad of Buster Scruggs, dos irmãos Coen, de Roma, de Alfonso Cuarón, e de 21 July, de Paul Greengrass, quando surgia a letra escarlate, N. Em Cannes 2017, a Netflix foi o monstro e os apupos perante os genéricos de Okja, de Bong Joon Hoo, e The Meyerowiitz Stories, de Noah Baumbach, ofenderam a empresa de streaming de Ted Sarandos. Mas a ofensiva estava declarada desde o primeiro dia: para o presidente do júri Pedro Almodóvar seria paradoxal que uma Palma de Ouro fosse para um filme sem distribuição em sala. Eis o que aconteceu em 2018 na Croisette: a Netflix foi oficialmente excluída da competição devido à pressão dos distribuidores franceses contra a inclusão no concurso de um serviço de streaming que não trabalha com convicção a estreia em sala, e excluiu-se ela própria das outras secções em que podia participar. 

Veneza 2018, primeiro dia: o presidente do júri Guillermo del Toro torna claro que um filme é um rectângulo, o que interessa é o que se passa dentro dele. E eis que, ao chegar ao final, este sábado, a 75ª edição de Veneza, festival que tem sido pragmático nas relações com os “novos operadores do mercado” e fez uma parte da sua festa com o que se excluiu de Cannes (e ficou com o filme e o documentário que ressuscitam The Other Side of the Wind, de Orson Welles, um dos míticos nados-mortos da história do cinema), pode consagrar com o prémio máximo, o que seria uma primeira vez, um filme Netflix: Roma, de Alfonso Cuarón, projecto pessoal do mexicano, em que é também autor do argumento, da fotografia e da montagem, e em que recorda a sua infância num bairro da burguesia da Cidade do México, nos anos 70. Cuarón teve 108 dias de rodagem, mais do que nas produções de Hollywood em que se envolveu (como Gravity).

Roma tem como personagem principal uma criada da família do realizador. A sua delicadeza é não se fechar no fetichismo da memória e da nostalgia. Distancia-se dela – os recorrentes travellings … – para abarcar a sua complexidade, confrontando-se Cuarón com o que na altura não podia ver: a invisibilidade social de Cleo, a ama. É o seu melhor filme, com Y Tu Mamá También (2001). Desde a primeira exibição no Lido que se mantém como favorito da crítica e dos espectadores, e isso é o sonho de um prémio de um festival. Se não levar o Leão não será por pudores contra a Netflix. Poderá ser, por exemplo, por Guillermo del Toro, que preside a uma equipa que inclui os actores Christoph Waltz, Trine Dyrholm e Naomi Watts e os realizadores Nicole Garcia, Sylvia Chang, Taika Waititi, Malgorzata Szumowska e Paolo Genovese, acusar algum incómodo: por ser, como se diz que é, amigo do compatriota Cuarón.

Se a Netflix salvou Orson Welles e ainda por cima levar o Leão de Ouro, com que cara fica Cannes e os seus princípios? E em que estado ficarão os protestos dos distribuidores, franceses e não só (saiu há duas semanas um comunicado da Federação Internacional de Cinema de Arte e Ensaio…), defendendo que um festival se deve interessar por filmes distribuídos em sala em vez de encorajar práticas que colocam em perigo um sector decisivo como é o da distribuição? Reabre-se o dossier?

O futuro aqui

Se o pragmatismo de Veneza e do seu director, Alberto Barbera, fê-lo abrir-se aos operadores de streaming, também organiza debates sobre o futuro, que já é aqui. Numa masterclass, como foi relatado pela imprensa, David Cronenberg e Spike Lee expuseram pontos de vista. Para o primeiro, um atleta olímpico dos vírus, há uma era que acaba, o que não constitui um problema porque outras coisas acabaram; é o processo de transformação. Cronenberg, disse, não pode ser nostálgico de algo – o “ideal” da sala que junta centenas de pessoas numa experiência comum – que nunca lhe proporcionou orgasmos. Está mais fascinado com o facto de hoje uma série de TV desencadear conversas a uma mesa de café. E admite sem prenúncios de apocalipse que um filme se transformou numa experiência individual: é como ler um livro.

Talvez esse futuro se tenha visto na competição, pela duração dos filmes: uma mão cheia chegou às duas horas e meia, de The Ballad of Buster Scruggs dos Coen a 22 July de Paul Greengrass, produções Netflix, passando por Suspiria de Guadagnino ou Peterloo de Mike Leigh, produções Amazon; pela sua “serialização”: o western em episódios dos Coen exterioriza o que fazem de forma mais sub-reptícia o western de Audiard, The Sisters Brothers, ou o alemão Never Look Away, de Florian Henckel von Donnersmarck, compacto da história da Alemanha do nazismo à RFA. Em suma, mostram-se as consequências de uma outra forma de consumo, online, em que a gestão individual, doméstica, do tempo não está presa ao continuum do ritual da sala.

É um consumo encostado ao conhecido também. Dominou o “cinema de género” – o western e derivados à cabeça, mas também o filme de samurais, o “filme de perseguição”…– e nisso foi um deslizar sem acidentes ou fulgores por terreno já pisados. A propósito: com The Favourite, o idiossincrático Yorgos Lanthimos faz o seu filme BBC, e é outro dos favoritos ao Leão (ou então prémio de interpretação para uma das actrizes ou, porque não?, insistem alguns, para as três: Olivia Colman, Emma Stone e Rachel Weisz). E com La Quietud, apresentado fora de competição, Pablo Trapero fez o seu Dallas ou Dinastia

No encontro com Cronenberg, Spike Lee terá feito a figura do nostálgico. Admitiu que teve orgasmos: quando se pôs a olhar para o tecto da sala à procura dos helicópteros no dia em que viu Apocalypse Now. Custa-lhe despedir-se das salas. Mas sublinhou: a Netflix anda à procura de produto, investiu este ano oito mil milhões de dólares em filmes e séries, segundo a Hollywood Reporter – e passou um cheque de 120 ou 150 milhões, os números variam, a Martin Scorsese para The Irishman, em que a tecnologia rejuvenesce 30 anos os rostos e as mãos de Robert de Niro, Joe Pesci e Al Pacino.

“Produto”… é aquilo a que Carlos Reygadas, habitué da competição de Cannes e dos seus prémios que passou este ano para o concurso de Veneza com Nuestro Tiempo, se refere como o “conteúdo”. “Desgosta-me este falso autorismo que na verdade é algo construído para se consumir em plataformas onde, como eles dizem, há ‘conteúdo’. Há ‘conteúdo’, ‘conteúdo’ em todo o lado. Poucos apoiam quem não está a produzir ‘conteúdo’ e está a produzir outra coisa. Sinto claramente um enorme desequilíbrio entre filmes que se preocupam com a linguagem e com a forma, e que tentam construir uma visão dos indivíduos como seres humanos, e esta televisão disfarçada de cinema, que odeia o que é ambíguo, o que é invenção de formas. Todos temos de existir”. Isto foi o desabafo de Reygadas, em conversa com o PÚBLICO depois da exibição do Nuestro Tiempo, filme de efeitos perturbadores no consumo normalizado de conteúdos – dito de outra forma, tal como no anterior Post Tenebras Lux (2012), este é um exercício para desenvolver os músculos dos sentidos que já esquecemos que tínhamos. E que contrapõe um “nosso tempo” aos tempos de hoje.

Se Roma ganhar… a Netflix não tem ainda estratégia definida quanto ao lançamento, ficou claro na conferência de imprensa do filme. Haverá “definitivamente” distribuição em algumas salas, mas... O retrato da empresa de Ted Sarandos feito pela Hollywood Reporter fala de uma empresa que procura ainda que o “seu” cinema saia debaixo da sombra das séries. Ainda não conseguiu um produto “de impacto cultural” como, por exemplo, a série Stranger Things. Precisa disso, porque os filmes se perdem no mar das séries. Precisa de aliciar “autores” para o seu campo. Para isso, e para além de lhes dar meios e liberdade, tem de garantir um perfil recortado na estreia – a estratégia de saída em sala em simultâneo com o dia da exibição na plataforma continua a ser incompreensível para autores ligados à individualidade e exclusividade do “acontecimento” e que por isso podem resistir ao aliciamento Netflix. Um Leão de Ouro em Veneza, como um Óscar, é decisivo para a caução que o operador precisa – o “novo” ainda precisa do “velho”.

E acabou. Os últimos filmes da competição desta 75.ª edição foram The Nightingale, de Jennifer Kent, Capri-Revolution, de Mario Martone, e Killing, de Shinya Tsukamoto. A cineasta de Brisbane, na sua segunda longa, depois de O Senhor Babadook, investe na libertação feminina e no anticolonialismo. Coloca lado a lado uma irlandesa deportada na Tasmânia e o aborígene que encontra o trilho que a leva à vingança do militar que massacrou a sua família. Sobram para o espectador dividendos da empatia que as personagens conquistam uma em relação à outra, mas este gothic australiano com fantasmas de western não perde tempo com o lirismo. Se tivesse mais pernas para andar ganhava em afastar a crueldade da involuntária paródia de que se aproxima.

É também uma história de revolução pessoal Capri-Revolution: quando, nas vésperas da I Guerra Mundial, uma rapariga de Capri, analfabeta, deixa de apascentar as suas cabras para se envolver com uma comunidade de naturistas que fez da ilha o seu paraíso. Martone, longe do cineasta de Morte di un matematico napoletano (1992) ou de L’Amore Molesto (1995), não encontra um tom para afirmar o olhar, perde-se entre o filme de ideias, mas como se acumulasse pistas para fazer a ponte com a “actualidade”, e o pitoresco.

Foi bem melhor acabar tudo com sabres e sangue, com Shinya Tsukamoto a fazer ao filme de samurais (Killing) o que Wong Kar-wai fez ao wuxia, o género de artes marciais e capa e espada chinês (Ashes of Time, em 1994). Se o cineasta de Hong Kong agarrava as acrobacias ao chão com metafísica, o japonês liberta-lhes o sangue e o erotismo. É um exercício breve mas de travo melancólico. Que é o que fica quando tudo acaba.