Poemas sem aviso

O último romance de Jacinto Lucas Pires é um elogio da poesia enquanto acto. Improvisado e sem nome.

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A acção do romance mais recente de Jacinto Lucas Pires tem início no dia 25 de Abril de 1974 RUI GAUDÊNCIO

O cruzamento de diversas linguagens que deliberadamente se contaminam entre si tem sido constante no percurso literário, talvez discreto mas sustentado, de Jacinto Lucas Pires (n. 1974), iniciado há cerca de vinte anos. Contista e romancista, o autor tem-se dedicado também (crescentemente) ao teatro e ao cinema (e até mesmo à música). Tal cruzamento e, sobretudo, a sua instrumentalização pragmática, articulada ao serviço de uma teorização (ainda que por vezes incipiente e casuística) sobre a criação artística em geral são legíveis em A Gargalhada de Augusto Reis.

A acção do romance mais recente de Lucas Pires tem início no dia 25 de Abril de 1974 e a sua frase inaugural consubstancia duas qualidades relevantes deste livro: o cuidado oficinal (o “truque”, dir-se-á adiante) que toda a (boa) literatura pressupõe e exige e um talvez excessivo uso de comparações ao longo do texto: “A cidade calada como um bocado de lua dentro de um aquário.” (p. 9) A segunda característica é muitas vezes eficaz e valorosa — “O automóvel fazendo a estrada muito devagar, colado à berma, como um míope a ler no escuro.” (p. 113); “Os dois avançando de olhos no chão como se, para fazer o caminho, tivessem de o ler primeiro.” (p. 236) — mas a sua ocorrência, sendo tão insistente, acaba tornando-se, por vezes, decorativa.

A poesia — ou, melhor, o desejo dela e uma espécie de crença na sua capacidade de emprestar sentido ao mundo — aparenta ser o tema do romance. A personagem principal, Augusto Reis, é um poeta convenientemente mítico e sem obra escrita, que foi também professor universitário de Economia Política, banqueiro e próximo do poder salazarista. É clara a intenção, aliás conseguida, de complexificar a personagem e, sobretudo, de subtraí-la ao cliché poético. Já o ensaio difuso de justificação da obra informal do imaginado poeta, tarefa atribuída a um seu amigo jesuíta, pareceu-nos apressado e superficial. O antagonista, por assim dizer, chama-se Djalma dos Santos e é um negro pobre da Amadora que, ainda adolescente, e catando papel com a mãe, descobre uma folha perdida contendo uma versão impressa de um poema de Reis. A descoberta desata-lhe o desejo de escrever poemas e de se cruzar um dia com o autor do Poema em cima da hora. Ambos os desejos serão atendidos, final feliz que tematiza, afinal, as virtudes dos novos tempos. Uma terceira personagem, Sofia Bessa, realizadora em crise pessoal e profissional, que chega aos poemas “sem aviso” de Reis através de Djalma, é sobretudo pretexto para mimar a linguagem de um argumento fílmico e veículo para algumas reflexões sobre o cinema e a mudez das palavras. A narração é feita por um narrador omnisciente e ausente, que faz bom uso do discurso indirecto livre, o que melhor permite ao autor espelhar no texto tanto o exterior quanto o interior das personagens, circunstâncias históricas e sociais e devaneios e fantasmas pessoais.

Sequências particularmente bem concebidas e realizadas são a da morte do pai do protagonista — “No quarto do Hotel Astória, em Coimbra, as coisas do pai estão diferentes. Passaram apenas algumas horas, mas as coisas já sabem da morte do dono.” (p. 251) — e a da rememoração das férias de juventude de Reis, quando este avista numa pastelaria de Vila Real uma “rapariga com nome de país” (a sua futura mulher), passando depois os dias a empanturrar-se de covilhetes na esperança de tornar a vê-la. Não sabe o leitor o que seja um covilhete e quer saber?: “É um pastel único no país, na Europa, no mundo. Uma tacinha de massa, ao mesmo tempo subtil e forte como um poema de Li Bai, que se enrola sobre si própria como um verso de Mallarmé e que no interior guarda a revelação de uma carne tão saborosa como uma palavrinha de Manuel Bandeira.” (pp. 185-6)

O programa de A Gargalhada de Augusto Reis é, porém, ambivalente, nele cabendo tanto o realismo social da descrição da vida de Djalma dos Santos na Amadora, quanto a digressão cómica sobre uma fuga abortada de Reis após o 25 de Abril, ou o episódio paródico-romântico de um pedido de casamento rejeitado por Sofia. Esta amplitude nem sempre é virtuosa. Ou será que o lugar-comum é, por vezes, o melhor inimigo de si próprio?

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