O reencontro com a censura

Brincar ao lápis azul é como beber para esquecer, resulta naquele momento, mas no dia seguinte o problema é maior.

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Joakim Honkasalo/Unsplash

O medo é uma reacção comum a algo que nos causa insegurança. Em algumas circunstâncias, o medo pode transformar-se numa reacção despropositada, agressiva ou mesmo violenta, e não raras vezes transforma-se numa espécie de vírus que prolifera e se massifica gradualmente.

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O medo é uma reacção comum a algo que nos causa insegurança. Em algumas circunstâncias, o medo pode transformar-se numa reacção despropositada, agressiva ou mesmo violenta, e não raras vezes transforma-se numa espécie de vírus que prolifera e se massifica gradualmente.

A pressão que levou ao impedimento de Marine Le Pen participar numa conferência, assim como o coro de indignação que se levantou perante a notícia de que a Universidade do Porto será anfitriã de um painel de conferencistas que nega as alterações climáticas são a prova de que a liberdade de expressão, o debate e o direito à divergência podem ser fácil e rapidamente censurados.

É inacreditável que qualquer pessoa, no seu perfeito juízo, acredite que silenciar ou censurar alguém possa eliminar a continuidade e proliferação das suas ideias. É um absurdo que alguém julgue que ilegalizar um movimento o faça desaparecer. São, em ambos os casos, perspectivas ingénuas e demonstrativas de um profundo autoritarismo que, de vez em quando, deixa aflorar o ditador que existe dentro de cada um de nós.

A obrigação, a censura e o silêncio não fazem desaparecer os nossos incómodos, nem serão à partida soluções para a resolução de problemas. A lista de grandes obras censuradas ao longo do século XX é extensa, mas nenhuma deixou de, mais tarde ou mais cedo, ser lida. Nenhuma ditadura conseguiu conter movimentos de resistência, ora colectivos ora individuais. A segregação racial deixou de ser legal nos Estados Unidos da América em 1965, mas o Ku Klux Klan mantém-se activo. Nelson Mandela esteve preso por mais de 20 anos e nem isso o impediu de se tornar uma personalidade de extrema relevância para a África do Sul e para o mundo. A criatividade que deu origem ao movimento Orange Alternative não foi limitada pelo regime soviético apesar da repressão, nem o assassinato de Trotsky impediu o seu contributo político.

Em Portugal, alguns escritos de Fernando Pessoa foram censurados pelo emergente regime ditatorial de António de Oliveira Salazar, ainda assim o primeiro não deixou de escrever poemas criticando o ditador. Agostinho da Silva e Abel Salazar foram afastados do ensino público, o primeiro por recusar aderir à "Lei Cabral", o segundo por, aparentemente, usar métodos pedagógicos contrários às orientações do regime. Zeca Afonso viu várias das suas canções censuradas.

O medo associado à crescente representação da extrema-direita em diferentes governos e em diferentes parlamentos de países europeus, inclusive no parlamento europeu, não deve motivar reacções de silenciamento, repressão ou censura. O medo associado a opiniões divergentes não deve justificar a recusa em ouvir e debater, tampouco a capacidade de desenvolver e refutar argumentos por mais descabidos e sustentados que possam parecer.

Deixarmos que o medo tome conte das nossas vidas ao ponto de termos que recorrer a todos os meios para ignorar, evitar ou transformar em tabu um qualquer assunto, uma qualquer problemática, é o primeiro passo para nos abstermos da realidade e do confronto que ela exige. É o primeiro passo para fazermos de conta que nada existe se não ouvirmos, se acontecer com outrem ou lá longe noutro país ou noutro continente. É antigo o provérbio "Olhos que não vêem, coração que não sente", mas será mesmo assim?

Fico com a clara impressão de que o mundo de cada um de nós é cada vez mais um ecrã, um ecrã que define o tamanho do mundo e a complexidade da realidade em que vivemos. Não tenho dúvidas que o medo é também uma excelente ferramenta de controlo e de manutenção do poder. E, não poucas vezes, o medo, difundido e direccionado para grupos, transforma-se facilmente num escape que, através da culpabilização e da responsabilização, permitem que nos distanciemos do que é realmente importante, dos motivos que conduziram ao "estado das coisas".

Deixo a ressalva. Não quero com isto tirar-vos o gosto pela censura e pela tentativa de silenciarem quem não gostam e quem tem opiniões divergentes das vossas, mas acreditem que não vos serve de muito, nem por muito tempo. Brincar ao lápis azul é como beber para esquecer, resulta naquele momento, mas no dia seguinte o problema é maior.