Directores de serviço do hospital de Gaia apresentam demissão em bloco

Cinquenta e dois médicos com funções de direcção apresentaram o pedido de demissão como forma de contestação à falta de condições nos serviços. Administração diz estar empenhada na resolução dos problemas.

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Marco Duarte

Cinquenta e dois médicos com funções de direcção no hospital de Gaia (directores, chefes de serviço e de departamento) apresentaram o pedido de demissão, como forma de contestação à falta de condições nos serviços. Também o director clínico do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho (CHVNG/E) está demissionário.

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Cinquenta e dois médicos com funções de direcção no hospital de Gaia (directores, chefes de serviço e de departamento) apresentaram o pedido de demissão, como forma de contestação à falta de condições nos serviços. Também o director clínico do Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho (CHVNG/E) está demissionário.

O anúncio foi feito esta quarta-feira, em conferência de imprensa na secção Norte da Ordem dos Médicos. "Não estamos a pedir melhores salários, estamos apenas a pedir que os pacientes tenham melhores condições", disse o director clínico demissionário, que falou em "condições indignas de assistência no trabalho e falta de soluções da tutela" para justificar o pedido de demissão conjunta.

José Pedro Moreira da Silva enumerou algumas das dificuldades sentidas numa estrutura que rotula como sendo “antiga e a funcionar mal”. São vários os serviços com apenas uma casa de banho para pacientes. São os casos das enfermarias de urologia (16 camas), de ortopedia (22 camas) e da unidade de cirurgias para homens (34 camas). Apontou ainda a falta de médicos, enfermeiros e pessoal auxiliar. Exemplo disso é a ala de medicina interna, que, para 20 camas, dispõe de dois auxiliares.

“Com esta estrutura não podemos prestar melhores cuidados”, sublinhou o director clínico. O centro hospitalar cobre uma população até 1,3 milhões de pessoas a norte do Rio Vouga, salientou, e está localizado no “maior concelho do Norte do país”, o “terceiro maior a nível nacional”.

Moreira da Silva afirmou ainda que a demissão não pretende criar uma ruptura com o actual conselho de administração, que iniciou funções em Abril do ano passado, mas admitiu que ajudaria se este saísse por considerar que ficou demonstrado que "não tem condições para liderar este processo". Os médicos demissionários vão manter-se em funções até serem substituídos. Mas admitem recuar na decisão se a administração sair e se as condições de trabalho melhorarem.

O conselho de administração reagiu a meio da tarde através de um comunicado, no qual diz ter tido conhecimento em Julho da intenção de demissão de alguns directores de serviço, mas que depois de uma reunião conjunta esta não se concretizou. "Das reuniões realizadas entre presidente do CA [Conselho de Administração], director clínico e referidos dirigentes não resultou qualquer pedido de demissão, tendo sido expressa a vontade de continuar a trabalhar para a melhoria do CHVNG/E."

Acrescentou que a 14 de Agosto houve uma outra reunião, esta nas instalações do Ministério da Saúde, com representantes da tutela, Câmara de Vila Nova de Gaia e do conselho de administração, "da qual resultou um forte compromisso de melhoria entre as partes". O conselho de administração disse estar "firmemente empenhado no cumprimento das decisões resultantes dessa reunião, as quais resultam em medidas concretas já em aplicação".

Falta de recursos e equipamento

Na carta que entregaram à administração, os profissionais focam-se em três problemas: falta de condições de trabalho estruturais, de recursos humanos e de equipamento.

Carências que põem em causa o funcionamento do serviço de Imagiologia, disse na conferência de imprensa o director demissionário, Pedro Portugal, que se vê obrigado a recorrer a “subterfúgios incorrectos” que passam pela “sobreposição de funções”, ao mesmo tempo que o número de pacientes aumenta. Isto tem-se reflectido num maior número de queixas formais por parte dos pacientes, por atrasos no atendimento.

Também demissionário, o director do serviço de cardiologia, Pedro Braga, afirmou que existe uma lista de espera de 80 doentes num “quadro estrutural grave”, cujas cirurgias têm sido adiadas “por falta de verbas ou camas”, num serviço que dispõe de oito camas nos cuidados intensivos e 12 na enfermaria.

“A OCDE prevê uma taxa de camas de internamento de 4,7%. Em Portugal a média está nos 3,6%. Em Gaia, para 360 mil habitantes está nos 1,7%", vincou igualmente o bastonário da Ordem dos Médicos, Miguel Guimarães.

António Araújo, presidente da secção Norte da Ordem dos Médicos, explicou ao PÚBLICO que "os médicos estão muito insatisfeitos" por estarem há anos nestas condições de trabalho. "Não são só as questões estruturais que estão em causa, são também os equipamentos, nomeadamente de TAC, que estão inseridos numa situação de subfinanciamento crónico que levou a um grau de insatisfação grande dos profissionais. Não havendo medidas até agora visíveis, os profissionais tomam medidas mais duras", disse, considerando que o pedido de demissão formalizado esta quarta-feira "é o corolário da inércia do ministério".

O Ministério da Saúde já foi informado do pedido de demissão. O CDS quer que a Comissão de Saúde convoque "com carácter urgente" a administração do CHVNG/E. Já o BE pediu a audição urgente do director clínico e o PSD/Porto pediu ao Governo que dê prioridade na resolução da “carência de recursos e equipamentos"

O Sindicato Independente dos Médicos emitiu um comunicado em que diz estar solidário com a decisão tomada pelos médicos do hospital de Gaia.

Ameaça desde Março

Desde Março que a ameaça de demissão está em cima da mesa por causa da falta de recursos humanos e de condições em alguns serviços, sobretudo nas urgências. Há mais de dois anos que as obras para o novo edifício que vai albergar a urgência e os cuidados intensivos estão paradas por falta de financiamento.

A demora na concretização da renovação fez com que a urgência se mantenha num “edifício reduzido e degradado”, “sem condições para a população que serve”, o que justifica o facto de o “hospital ter uma taxa de infecção muito acima daquilo que deveria ter”, afirmou ao PÚBLICO um director de serviço que não quis ser identificado. Outros serviços necessitam igualmente de obras. “É caótico”, disse.

No início de Julho, o presidente do conselho de administração do CHVNG/E, António Dias Alves, anunciou o arranque da segunda fase das obras do edifício que irá receber a urgência. Avaliadas em 16 milhões de euros, as obras têm um prazo de 350 dias para estarem concluídas — o que significa que só acontecerá em 2019. Entretanto, em Agosto, o Governo autorizou o arranque da terceira fase das obras.

Medidas que o conselho de administração relembrou no comunicado emitido em reacção ao anúncio das demissões. Assim como dá conta da integração do Centro de Reabilitação do Norte no centro hospitalar e do início de actividade da Unidade de Hospitalização Domiciliária.

"O Serviço de Urologia, à data com as piores instalações do CHVNG/E, verá igualmente a sua situação resolvida com a conclusão da Fase B, a decorrer actualmente", adiantou ainda a administração.

Possibilidade de novos pedidos de demissão

A situação, que já era complicada devido à falta de condições, deteriorou-se em Março deste ano quando a administração não abriu vagas para integrar todos os médicos recém-especialistas formados no hospital. Em alguns serviços não abriu qualquer vaga.

Nessa altura, o bastonário dos médicos visitou o serviço e tornou pública a intenção de demissão dos 37 directores dos serviços médico-hospitalares caso "a situação caótica” se mantivesse. Miguel Guimarães comparou então a urgência do hospital de Gaia/Espinho a “um cenário de guerra, com macas por todo o corredor”, onde “quase que não se podia circular”. Algo que se passava, afirmou, em quase todos os serviços.

Este hospital está a definhar”, declarou o bastonário há seis meses, a propósito desta visita que culminou com o envio de um pedido "urgente" de reunião ao ministro da Saúde. Seguiu-se uma reunião com o conselho de administração, da qual os médicos saíram com a expectativa de que as obras estariam para breve, assim como as contratações dos assistentes hospitalares.

Sem mudanças, a equipa da direcção clínica e os directores de serviços voltaram a mostrar disponibilidade para se demitir em bloco. Perante o impasse até ao momento, os médicos começaram a recolher em Agosto assinaturas para a carta de demissão divulgada esta quarta-feira. Nesse mês, em entrevista ao PÚBLICO, o bastonário dos médicos antecipava que pudessem haver demissões em bloco nos hospitais de Gaia e Vila Real.

Na conferência de imprensa desta quarta-feira, Miguel Guimarães admitiu que nos próximos tempos poderão existir mais pedidos de demissão. Também o presidente da secção norte da Ordem dos Médicos fez o mesmo alerta. "O Dr. António Costa afirmou que se tratavam de situações pontuais. O que se tem verificado é que estas situações pontuais começam a ser muito frequentes", disse António Araújo.

Recentemente os directores de serviço dos hospitais São José, em Lisboa, e Tondela-Viseu apresentaram demissão por falta de condições.

António Araújo adiantou que será feito um reforço ao pedido de reunião urgente com o ministro da Saúde que já tinha sido efectuado e que não teve resposta.

Já o bastonário lembrou que se está a iniciar o período de discussão do Orçamento de Estado para 2019 e chamou a atenção para a necessidade de se ter em conta o Serviço Nacional de Saúde e as condições que os hospitais enfrentam.