A solidariedade europeia e a indecência do Estado

O Governo desviou dinheiro destinado às vítimas dos incêndios para os serviços que devem ser apoiados pelo Orçamento do Estado. Razão tem Rui Rio: se não é ilegal, é, pelo menos, imoral.

O Governo fez o que todos os governos de Portugal têm feito quando chegam mais uns trocos de Bruxelas: correu a imaginar soluções para desviá-los para alimentar a voracidade do seu Estado obeso. Mas, desta vez, ouviu-se um clamor de protesto mais nítido porquê? Porque o Governo desviou dinheiro destinado às vítimas dos incêndios para os serviços que devem ser apoiados pelo Orçamento do Estado. Ponha-se o leitor na pele de um contribuinte da Finlândia ou da Alemanha, cujos impostos financiam o Fundo de Solidariedade da União que acudiu os portugueses com 50,6 milhões de euros, e imagine que eles ficavam a saber que o produto da sua solidariedade acabava na maior parte no labirinto dos bombeiros ou da Protecção Civil: não ia gostar de financiar a burocracia quando pensou em ajudar as vítimas, pois não?

Razão tem Rui Rio quando diz que, se a decisão do Governo não é ilegal, é, pelo menos, imoral. Porque põe em crise o conceito de “solidariedade” — o reconhecimento do sofrimento dos outros e, consequentemente, a acção no sentido de os ajudar a mitigar esse sofrimento. Ora, quando a Comissão Europeia decidiu libertar 50 milhões dos seus fundos, não estaria certamente preocupada em ajudar o ministro Eduardo Cabrita a comprar mangueiras para os bombeiros ou papel para a secretaria do ministério; o que mobilizou a solidariedade europeia foi o drama vivido pelos habitantes de Mação ou de Pedrógão, foram as perdas dos produtores florestais ou das empresas destruídas. Não perceber isso é como fazer o papel do oportunista que se governa nos interstícios das tragédias. É muito feio, é imoral e ditaria um debate bem mais sério se o Bloco e o PCP não se tivessem transformado numa jukebox que só disponibiliza uma lista de temas seleccionados pelo Governo.

O Governo não inventou a roda. O PSD de Passos, ou de Cavaco, foi useiro e vezeiro em desviar fundos europeus das regiões mais pobres para fazer obra pública em Lisboa com o pretexto de que essa obra acaba por beneficiar toda a gente. Com o Fundo de Solidariedade, a narrativa mistificadora repetiu-se. Mesmo que, no seu cinzentismo burocrático, Bruxelas venha a dizer que está tudo bem, a realidade é mais indecente: há 26 milhões de euros que deviam estar nas mãos das vítimas dos fogos e acabaram nas malhas do Estado.

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