João Cravinho: “É preciso extinguir o que só serve para enganar o povinho”

João Cravinho dedicou a vida à prevenção e combate à corrupção, que considera ser hoje “um grande problema nacional”, um “problema endémico”. E insiste em defender um “sistema eficaz e coerente”.

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Daniel Rocha

João Cravinho: “Fui ingénuo e estúpido”

É ainda hoje, aos 81 anos, considerado uma bête noire por políticos, gestores e empresários. A forma como enfrentou e enfrenta a corrupção em Portugal, sobretudo desde que foi ministro do Equipamento, Planeamento e Administração do Território do primeiro governo de António Guterres (1995-1999), fez com que João Cravinho fosse arrumado na prateleira dos políticos que incomodam demais.

“Há muito que tenho a preocupação de lutar contra a expansão da corrupção”, reconhece Cravinho, confessando: “O ex-Presidente da República Jorge Sampaio disse-me que encontrou nos cadernos de notas um relato de um debate sobre corrupção que levei a uma reunião do secretariado de que fiz parte quando ele liderou o PS, no final dos anos 80.”

Não desistindo de alertar o país para os riscos e os efeitos de erosão da democracia que advêm dos comportamentos e práticas corruptas ao nível do Estado, Cravinho considera que “hoje a corrupção é um grande problema nacional” e é até “um problema endémico”. Não perdendo a esperança de que um dia o país político olhe para o problema, salienta as recentes tomadas de posição da JSD e da JP sobre o assunto: “Congratulo a JSD, em especial a sua líder, Margarida Balseiro Lopes, e também a JP por terem assumido que a corrupção é um grave problema do país. São um exemplo da reflexão que o Parlamento devia fazer.”

Cravinho frisa que a corrupção tem aumentado, fruto da passividade dos responsáveis políticos que têm rejeitado a construção de um sistema coerente e eficaz de prevenção e combate. Ao longo de duas décadas, o problema têm-se adensado, até porque as poucas medidas tomadas surgem como desconexas. É por isso que o homem que tem carregado a bandeira desta causa garante: “Isto já não vai lá com
panos quentes. É preciso extinguir o que só serve para enganar o povinho.”

Primeiro, a estratégia

Tendo estudado e reflectido profundamente sobre a corrupção, Cravinho tem ideias sistematizadas de como a prevenir e combater, que explica ao PÚBLICO. À cabeça e como enquadrador do sistema, “tem de ser aprovada no Parlamento uma Estratégia Nacional de Prevenção e Combate à Corrupção”.

Para a aplicar, terá de ser feita “a articulação sistémica do funcionamento dos órgãos do Estado, no respeito do seu estatuto e meios face à Constituição”, já que “cada um tem a sua função, mas têm de ser coordenados e saberem uns dos outros”. A urgência é ditada pelo facto de que, “ainda hoje, não há nem sistema eficaz e coerente, nem estratégia de prevenção e combate, nem responsabilidades definidas e escrutinadas publicamente, com envolvimento de todos os órgãos de soberania”, sublinha.

No topo do sistema, tal como fazia no pacote de leis que tentou fazer aprovar pela Assembleia há mais de dez anos, Cravinho continua a colocar o Parlamento. “Acima de tudo, a Assembleia da República deve sentir-se responsabilizada e responder perante o povo, ela tem os poderes máximos, fiscaliza o governo e a administração, legisla, vota orçamentos, é aí que tem de estar o centro de tudo”, enfatiza. E é o Parlamento que tem de ser responsável máximo por “dar prioridade à afectação de meios suficientes e necessários para o bom funcionamento desses órgãos”.

Mantendo uma ideia por si proposta de criação de uma Comissão de Prevenção da Corrupção, sob tutela do Parlamento, Cravinho defende que a gestão dos meios “deveria ser competência dessa comissão” e lembra: “Aliás, propus uma alteração da lei criminal que obrigaria a um relatório anual do Ministério Público sobre os meios necessários.”

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No entanto, o problema continua a ser ignorado: “Hoje os centros de investigação continuam a dizer que não têm meios, o que é verdade. A Assembleia vota orçamentos do Estado, devia fazer o levantamento dos meios necessários. Quem tem obrigação de resolver é a Assembleia e não faz nada.”

Uma outra linha de acção urgente, segundo Cravinho, tem que ver com a mudança da atitude. “É crucial entender os fenómenos de corrupção não apenas como matéria de casos policiais e judiciais avulsos, mas como manifestações de criação de vantagens próprias ilícitas ao abrigo de uma ancestral cultura laxista e tolerante da corrupção”, advoga.

Continua a prevalecer em Portugal uma mentalidade em que é regra “o tráfico de influências, a cunha, a ideia de que fazem todos pela vidinha” e “o resultado é a destruição das instituições democráticas, além do ataque às finanças públicas”, afirma Cravinho, justificando que “é preciso a mudança de cultura cívica e política” e também a valorização da ética pública e individual. Por isso, defende: “As questões centrais têm de ser: o que é o sucesso na vida? O que vale ser sério, ser honesto?”

Tarefa para a qual “é preciso assentar um combate cultural na prevenção sistémica, nos princípios da transparência e da administração aberta e da participação da cidadania, e escrutinar e sancionar rigorosamente a sua não observância”. Pôr fim a uma situação em que “toda a gente faz discursos, mas nada fazem no concreto, nem há sanção pesada”.

“Árvore torta”

Exemplo é, para Cravinho, o Conselho de Prevenção da Corrupção, “que não tem uma medida sancionatória e quando foi criado não tinha um funcionário”. Depois de ter proposto, há mais de dez anos, a Comissão da Prevenção da Corrupção, Cravinho é categórico: “É preciso criar um novo conselho como eu propus na Assembleia. O que é preciso fazer não é endireitar a sombra torta de uma árvore torta.”

Defendendo que “é preciso extinguir o conselho para mudar o modo como foi constituído e funciona”, Cravinho sublinha: “Os presidentes do Tribunal de Contas Guilherme d’Oliveira Martins e agora Vítor Caldeira são pessoas pelas quais tenho a maior consideração, fizeram o que podiam e podem com o instrumento que têm, ele é que não serve para nada.”

Indo mais longe nas críticas ao órgão que é presidido em acumulação com o Tribunal de Contas, diz que “o conselho tem erros de constituição, até de inconstitucionalidade, pois os membros têm dependência governamental”. Como prova da ineficácia deste órgão lembra que “há centenas senão milhares de pareceres feitos pelo Tribunal de Contas e nunca se levantou o problema do envolvimento dos políticos na corrupção”, assim como “há 900 programas de prevenção de corrupção pelo país e nunca ninguém foi condenado”.

No plano legislativo, Cravinho defende a necessidade de “criar, aplicar e regulamentar uma lei-quadro da transparência administrativa e da administração aberta”. Isto porque a “administração aberta está constitucionalizada em artigo sobre o Tribunal de Contas, mas a transparência não”, salienta, insistindo que “não há nada sobre transparência, até na Constituição deveria estar inscrito porque a transparência hoje é um princípio de Estado”.

Outro diploma que “é preciso rever em profundidade é a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), incluindo a defesa de uma nova forma de corrupção de Estado”, que passe por “garantir a defesa de direitos individuais face às novas modalidades de informação e comunicação trazidas pela revolução digital”. Sublinha que sobre esta questão “há uma directiva comunitária, mas deve ser sistematizado em lei”.

Isto porque, com “o novo mundo digital, vivemos uma revolução de paradigma” sobre o que “são os problemas do escrutínio e da regulação do uso dos dados, os quais são o ouro da revolução digital”. Colocam-se assim “problemas novos sobre a forma de os cidadãos serem informados”, mas também de “proteger os seus direitos, não só de privacidade, mas de não verem os seus dados enviesados ou manipulados”, que obrigam à “reorganização profunda de toda a utilização sistémica de dados”.

Nesse pressuposto, Cravinho considera que deve também ser extinta “a Comissão Nacional de Protecção de Dados, que deve ser substituída por uma comissão de informação segundo o modelo inglês, a Information Commissioner’s Office, que inclusivamente tem de listar e divulgar a informação que detém, à excepção do que a lei prevê”. Salientando que a actual comissão obedece a um modelo “de há 50 ou 60 anos, que vai contra o que hoje é o direito dos cidadãos a serem informados”, e obedece a “uma concepção passiva”, defende que o novo órgão “tem de ter uma concepção proactiva como em Inglaterra, lá a comissão pode investigar e até propor leis”.

Despartidarização do Estado

A despartidarização das nomeações no aparelho do Estado é outra linha de acção. Cravinho propôs, aliás, esta ideia, baseando-se no modelo belga, quando em 2010 foi ao Parlamento ser ouvido pela comissão eventual sobre corrupção, liderada por Vera Jardim.

“Actualmente, a CRESAP escolhe os três melhores e o ministro escolhe entre estes. Mas deveria ser diferente, a CRESAP devia graduar os candidatos. E se o ministro não escolher o primeiro, tem de justificar”, defende, prosseguindo: “A lei deve regulamentar os motivos que o ministro pode evocar para a sua escolha e recusa do primeiro classificado, não pode ser pelos olhos verdes ou porque o conhece há muitos anos. Tem de ser apresentada uma razão de fundo decente.”

Considera também necessário “aperfeiçoar as leis de segredo de Estado, do sigilo bancário e dos serviços de informações”. Além de “rever a legislação criminal de forma a introduzir na lei a negação da personalidade jurídica a entidades de que não se conhece o beneficiário último, em que se enquadram as offshores”. Assim como “os contratos públicos de grande complexidade têm de ter auditores que acompanham”, há também “uma directiva comunitária sobre o assunto que impõe isto, mas tem de ser aperfeiçoada nacionalmente”.

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Há ainda um princípio que Cravinho considera que deve ser importado e “instituído em lei, o da cooperação dos cidadãos na defesa do interesse do Estado”, embora saiba que “a cultura portuguesa é antidelação”, diz que “este instrumento é importante”. Como exemplo, dá o “direito do Qui tam”, existente nos Estados Unidos desde o século XIX, e que permite que “os cidadãos promovam uma acção judicial”.

Uma pessoa “diz que tem provas e faz uma acção com tramitação específica. Se apresenta provas válidas, a Procuradoria assume o processo, ficando o cidadão associado”, explica, frisando: “Nos EUA, há cerca de 700 casos destes por ano. Este recurso vem da Guerra Civil, chama-se a Lei Lincoln. Tem um efeito dissuasor no crime de colarinho branco. É feito para garantir que há apresentação de provas por gente vária que está na dependência do beneficiário do crime de corrupção.”

Por fim, salienta que, para inverter a lógica de gestão de Estado e dos bens públicos, que desde os anos 90 do século XX facilita a corrupção, é preciso recuperar os serviços jurídicos e as auditorias jurídicas nos ministérios que foram sendo “enfraquecidos e extintos”, sendo substituídos pelo recurso “a escritórios de advogados que fazem as leis”.

Ora, Cravinho adverte, “os escritórios de advogados são elementos de condução de interesses privados e vertem-nos para as leis que fazem”. E sublinha que “as sociedades de advogados podem ser consultadas, darem parecer para um aspecto ou outro de uma lei, mas com fiscalização do próprio Estado, não é fazerem a lei”.

Reconhece que “o Governo actual está a tentar controlar isto com a criação do centro jurídico, mas as auditorias jurídicas acabaram nos ministérios”, quando “os auditores jurídicos nos ministérios são do Ministério Público, são independentes” e o sistema funcionava “desde o I Governo Constitucional”.

Lembrando uma situação que viveu na primeira pessoa, conta-a para mostrar como o sistema foi sendo enfraquecido. “No primeiro Governo de António Guterres [1995-1999], este levou a um Conselho de Ministros a questão de acabar com as auditorias jurídicas. O Governo dividiu-se. A discussão foi inconclusiva. Guterres levou uma segunda vez a ideia a debate. O Conselho de Ministros voltou a dividir-se. Eu próprio recusava acabar. No fim, Guterres percebeu que não dava e disse: ‘Aqueles que quiserem acabar acabam, os que não quiserem não acabam’.”

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