Brasil: o gigante a quem ardeu o passado

Seria bom imaginar que a tragédia cultural da perda do Museu Nacional levasse o Brasil a querer olhar-se no espelho e avaliar-se de outra forma.

Costuma dizer-se que uma civilização se avalia pela forma como trata as crianças. Ou que um país se avalia pela forma como trata os estrangeiros. Ou que uma comunidade se avalia pela forma como trata os seus idosos. Ou que a própria espécie humana se definirá pela forma como trata as outras espécies e o planeta como um todo.

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Costuma dizer-se que uma civilização se avalia pela forma como trata as crianças. Ou que um país se avalia pela forma como trata os estrangeiros. Ou que uma comunidade se avalia pela forma como trata os seus idosos. Ou que a própria espécie humana se definirá pela forma como trata as outras espécies e o planeta como um todo.

Podem estes preceitos morais, assim apresentados como se se atropelassem uns aos outros, serem todos verdadeiros ao mesmo tempo? Acho que sim. Porque há um princípio subjacente a todos eles, aquele que o filósofo ecologista Hans Jonas chamava “o imperativo da responsabilidade”, princípio que é tanto mais imperativo quanto as categorias de que estamos a falar são vulneráveis. A razão por que dizemos que uma comunidade ou um país se definem pela forma como tratam as crianças, os mais velhos, os estrangeiros, as pessoas com deficiências, os refugiados, os seus prisioneiros, a sua natureza ou os animais, — e porque podemos dizê-lo sobre todas estas categorias ao mesmo tempo, tendo sempre razão de cada vez que o dizemos — é porque todas estas categorias representam alguém ou algo que está numa posição de vulnerabilidade. E quanto mais vulneráveis as pessoas ou as coisas são, mais necessária se torna a elevação moral de quem consegue assumir a sua responsabilidade por elas.

Penso que é por isso que podemos também dizer que uma sociedade se avalia também pela forma como trata o seu passado. O passado é, por definição, vulnerável. Quem o produziu já não está cá para custodiar a sua memória. Quem agora vive pode, se quiser, desprezar o passado, destruí-lo, deixá-lo ao abandono. Porque é que isso nos choca? Porque aqueles vestígios do passado — documentos, monumentos, fósseis, objetos pessoais, arte, ferramentas, cartas e inúmeras outras coisas — são muitas vezes as únicas coisas que sobram de quem viveu há séculos ou até milénios. Quanto mais nos vamos afastando dessas épocas e se vão desvanecendo histórias, músicas e património imaterial, o desaparecimento desses vestígios materiais constitui uma espécie de segunda morte simbólica dos humanos que estiveram por detrás deles.

Claro que uma morte simbólica pode ser uma tragédia cultural, mas uma tragédia diferente de uma morte real. Morrer uma pessoa é sempre pior do que destruir-se um objeto. E, no entanto, creio que não é só como historiador que enfatizo a tragédia que é perder-se o passado. Todos os humanos sabem e sentem que um dia serão apenas o passado e por isso têm uma forte preferência por que as gerações futuras consigam ser cuidadosas guardiãs do passado — ou seja, de nós, no futuro. E por isso sentimos repulsa por quem destrói gratuitamente o passado, como os talibãs ou o ISIS. E deveríamos alarmar-nos também com quem, mesmo não destruindo o passado, o despreza.

Este é, creio eu, o instinto que está por detrás do horror com que vimos as imagens do Museu Nacional do Rio de Janeiro a arder. Aquele é o nosso passado — do Brasil, também de Portugal, do mundo todo e, muito especialmente por ser um museu antropológico e natural, de todas as culturas humanas que viveram muito antes de haver Brasil, Portugal, países ou estados, e das espécies e natureza que as precederam — e ardeu, acima de tudo, porque foi desprezado.

Este é um argumento político — e é verdade que a proteção à cultura tem descido a níveis penosos no Brasil do impeachment — mas não tem de ser um argumento partidário. Afinal, o Museu Nacional do Rio de Janeiro fica a pouca distância do Estádio do Maracanã, renovado como muitos outros estádios nos governos Lula e Dilma para ficarem no “padrão FIFA”. Com uma fração desse dinheiro o Museu Nacional teria sido protegido com sistemas anti-incêndio. Não é apenas uma escolha sobre onde pôr o dinheiro. É uma escolha acerca de que sociedade se quer ser.

Todos os dias se perdem vidas no Brasil em tragédias humanas. Todas essas vidas são insubstituíveis. Seria bom imaginar que a tragédia cultural da perda do Museu Nacional levasse o Brasil a querer olhar-se no espelho e avaliar-se de outra forma. Isto não deixa de ser verdade por ser uma banalidade: tratar melhor o seu passado ajudaria o país a tratar melhor o seu presente e o seu futuro.