Aconteceu. Estou num dia mau e respondi a um piropo

Arrancou como um desabafo. Três frases que fazem a introdução para um diálogo não requisitado. "Aconteceu. Estou num dia mau e não deu para filtrar." O que veio depois disso espelha a naturalidade com que o assédio se repete e a importância de não o ignorar.

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REUTERS/Marcos Brindicci

Foi na terça-feira, a meio da tarde. Estava a regressar do trabalho, a subir em direcção ao Jardim da Estrela, em Lisboa. A rua movimentada, cheia de cafés e lojas de comércio. Ia sozinha, com o rosto para baixo, agarrada ao telemóvel. Do meu lado esquerdo ouço um "Olá, princesa". Não precisava de olhar para saber que não era ninguém conhecido. Quem me conhece sabe que não gosto particularmente que se dirijam a mim com um "princesa". E o historial de experiências deixava antecipar que era mais um piropo. Houve uma voz, a de sempre, que me disse baixinho "Liliana, ignora e segue". Não o fiz.

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Foi na terça-feira, a meio da tarde. Estava a regressar do trabalho, a subir em direcção ao Jardim da Estrela, em Lisboa. A rua movimentada, cheia de cafés e lojas de comércio. Ia sozinha, com o rosto para baixo, agarrada ao telemóvel. Do meu lado esquerdo ouço um "Olá, princesa". Não precisava de olhar para saber que não era ninguém conhecido. Quem me conhece sabe que não gosto particularmente que se dirijam a mim com um "princesa". E o historial de experiências deixava antecipar que era mais um piropo. Houve uma voz, a de sempre, que me disse baixinho "Liliana, ignora e segue". Não o fiz.

Parei, voltei-me para o homem. A descrição dele aqui pouco importa. Os assédios e abusos acontecem sob todas as formas e com todos os géneros e orientações. Todas as idades. "Não voltes a fazer isso", disse-lhe, num tom calmo, mas assertivo. O espanto apoderou-se da cara dele. Não estava à espera de uma resposta e isso foi claro quando me devolveu, rispidamente e com um ar de rejeitado ofendido: "Porquê? Não te posso cumprimentar?" "Não, não podes, não me conheces de lado nenhum." A gaguejar, lá deixou que ouvisse um "Já vi que és dessas", depois de tentar um "Gostas, gostas". "Somos todas destas. Ninguém gosta disso. É desagradável. É escusado. É mal-educado." Mandou-me embora. Disse-lhe que ia, mas que esperava que pensasse duas vezes antes de voltar a fazer o mesmo. Virei-lhe as costas e segui caminho. Soube-me bem. Porque senti, pela primeira vez, a olhar nos olhos dele, que o tinha deixado desconfortável também. E que lhe dava pelo menos uma amostra do incómodo que me fez sentir.

Partilhei o resto da conversa, resumidamente, no Twitter. Por nenhuma razão em particular, sem presunção de causar o que quer que fosse. Escrevi e pronto. A publicação arrancou com o título desta crónica. O que daí resultou é o que me leva a escrever este texto. E não foram reacções geracionais, o que me preocupou ainda mais em relação ao futuro. Vamos por pontos.

Não aceito que me digam como me devo sentir. Na terça-feira, aquela frase mexeu com a minha tranquilidade, o meu corpo e a minha consciência de espaço. Como alguém me dizia, a privacidade, enquanto direito individual, não depende do espaço físico que a pessoa ocupa. E assédio é isso. Não é "uma simpatia". Um "princesa" nunca é só um "princesa". Não é a frase. É o que vem com ela. É o olhar nojento e o sorriso lascivo. É o arrasto na intervenção. É o tom jocoso com que é feito. Porque a base do piropo é igual. Seja ele mais explícito ou menos explícito, mais disfarçado ou mais visual. Seja um "Olá, princesa", "Lambia-te a cona" ou até um #grabthembythepussy. Em todos os exemplos, é cuspir testosterona.

A primeira vez que me senti assediada tinha 14 anos. Estava na primeira semana de aulas e fui, com umas colegas de turma, passear durante a hora de almoço. Numa rua perto do Castelo de Leiria, um homem baixou as calças quando passámos e começou a masturbar-se. Porque nos é dito desde sempre que "Não tem mal, não ligues, é gente doida, o melhor é ignorar", não contámos a ninguém. 

Demorei 13 anos a fazê-lo. E tenho mais coisas a dizer. Isto não se esquece. A sensação de insegurança constante não se esquece, ainda que recalcada num cantinho. Não pára. Não desaparece o desconforto e a opressão social do "Não ligues, ignora, o melhor é não fazer nada". Enquanto não se fizer nada, enquanto dissermos a nós mesmas que "não tem mal", que "princesa nem é ofensivo", não se perde esta concepção de que nos devemos sentir lisonjeadas por um perfeito desconhecido elogiar o nosso corpo. "É uma simpatia." Não é. E há formas elegantes de abordar alguém.

Um piropo não é um elogio. Um piropo é um exercício de poder. De quem acha que pode — e não pode. De quem acha que as pessoas querem ser objectivadas pelo seu corpo e que estão à disposição de quem quer. Ou queria. Não estão. Ninguém tem de estar sujeito a lidar com os comentários causados pela "atracção sexual" que estimula.

"Mas deu-lhe conversa porquê? Porque respondeu ao piropo? Não tem mal, não ligues, é gente doida, o melhor é ignorar." Repitam comigo: responder não é dar conversa. Tal como piropo não é um cumprimento. Se querem cumprimentar alguém, digam-lhe bom dia. Aliás, venho de uma aldeia e por isso cresci e regresso frequentemente a um sítio onde, mesmo entre desconhecidos, se trocam "boas tardes" e "bons dias" em caminhos cruzados. Ninguém está a impor um apartheid entre homens e mulheres, homens e homens e mulheres e mulheres. As únicas pessoas que têm receio disso são as que não têm qualquer integridade e noções básicas de interacção social. 

No meio dos energúmenos, muitas raparigas e mulheres (e homens) partilharam as suas experiências. E isso recordou-me de duas outras recentes. No último ano e meio, dois estranhos, ambos mais velhos, tocaram-me de forma imprópria e deliberadamente em plena luz do dia.

O primeiro foi há cerca de um ano, no comboio de Alcântara-Terra. Estava sentada do lado da janela, quando um homem se sentou ao meu lado. Colocou o casaco entre o espaço que separava os nossos assentos, cobrindo-me uns centímetros da coxa. Não dei importância. Não passaram dez segundos até começar a sentir um corpo quente em cima da minha perna. Berrei-o imediatamente. Levantou-se e saiu a correr na estação seguinte. À minha volta houve umas cabeças que se voltaram, mas a curiosidade não chegou para perguntar se estava bem ou o que tinha acontecido. Lembro-me que durante dias senti repulsa. Durante dias conseguia sentir a mão daquele tipo na minha perna. O segundo caso foi numa viagem de autocarro entre Lisboa e Porto. O homem, que não falava português ou inglês, pediu-me ajuda para lhe explicar onde é que devia sair. Dei-me ao trabalho de abrir o mapa de Portugal no telemóvel para lhe explicar. Começou a diminuir a distância, eu ia-me afastando para a ponta do meu assento. Pôs a mão na minha perna. Disse-lhe: "Stop." Tirou. Momentos depois, a mesma abordagem. Olhei para ele, para a mão e novamente para ele "No". Fingiu que não percebeu. Com a minha mão, tirei a dele e mudei de lugar e esforcei-me para que ele não percebesse que me tinha deixado insegura. Só ontem, quando contava a alguém esta história é que me apercebi que nem contei ao motorista. Que a guardei porque "Não tem mal, não ligues, é gente doida, o melhor é ignorar".

Obviamente que o "Olá, princesa" não foi o pior que me aconteceu. Mas isso não lhe tira importância. Talvez pela frequência da sua repetição, ou talvez por acompanhar de perto denúncias de assédio, abuso e violência sexual. Cheguei ao meu limite em relação à normalização e não admito dar espaço à mínima tentativa. Mesmo que nos digam "Não tem mal, não ligues, é gente doida, o melhor é ignorar".