Comboio Corunha-Porto em risco se ameaçar receitas da Renfe

Em Espanha, a liberalização do serviço ferroviário está direccionada para o longo curso e Arriva pode pôr em causa o regional. Empresa não pediu a Portugal para operar no troço entre Valença e Porto.

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Nelson Garrido

O projecto da Arriva España (que pertence ao operador ferroviário estatal alemão DB) para explorar o serviço Corunha – Porto pode ficar comprometido se a Renfe entender que os passageiros entrados e saídos nas paragens intermédias pelo novo concorrente lhe afectarem as receitas em mais de 2%. Nesse caso, a Comissão Nacional de Mercados e Concorrência (CNMC) poderá impedir que o serviço internacional da Arriva tenha paragens intermédias, obrigando-o a que seja directo entre Corunha e a fronteira portuguesa.

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O projecto da Arriva España (que pertence ao operador ferroviário estatal alemão DB) para explorar o serviço Corunha – Porto pode ficar comprometido se a Renfe entender que os passageiros entrados e saídos nas paragens intermédias pelo novo concorrente lhe afectarem as receitas em mais de 2%. Nesse caso, a Comissão Nacional de Mercados e Concorrência (CNMC) poderá impedir que o serviço internacional da Arriva tenha paragens intermédias, obrigando-o a que seja directo entre Corunha e a fronteira portuguesa.

Se, porém, as receitas da Renfe só forem afectadas entre 1% e 2%, então a autorização estará condicionada a que a percentagem dos novos passageiros originados pelo novo serviço ultrapasse os 30% dos passageiros totais.

E só se as contas da Renfe forem afectadas em menos de 1% pela concorrência da Arriva, é que a autorização é dada automaticamente ao novo operador.

As coisas não estão, pois, fáceis para os projectos que venham concorrer com a estatal Renfe pois a CNMC entende que a liberalização do transporte ferroviário de passageiros se aplica ao longo curso e “não deve pôr em perigo o equilíbrio económico dos contratos de serviço público dos suburbanos e média distância [regionais]”. Isto é: a Renfe deverá ser protegida nesses serviços e não poderá a Arriva roubar-lhe quota de mercado significativa pelo facto de fazer paragens intermédias dentro do troço nacional.

A linha da Arriva prevê que os seus comboios entre Corunha e Porto tenham paragens em Santiago de Compostela e Pontevedra, no território espanhol, e em Valença e Viana do Castelo no território português.

Juan Ignacio García de Miguel, CEO da holding Arriva España, contactado pelo PÚBLICO, reconhece que uma eventual proibição da prática de cabotagem (serviço comercial nas estações nacionais) poderá pôr em causa o projecto porque os passageiros aí gerados são fundamentais para a sua sustentabilidade.

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Estação de Viana do Castelo, na Linha do Minho Nelson Garrido

“Vamos esperar para ver o que dirão a Renfe e o Adif [gestor de infraestruturas ferroviários]. Senão teremos que rever todo o projecto. Em todo o caso, creio que a Renfe está mais preocupada com o corredor de Madrid a Barcelona do que com o Corunha – Porto”, disse ao PÚBLICO.

Em Espanha um outro operador privado, Ilsa, ligado à companhia aérea Air Nostrum, também pediu à CNMC para operar um serviço ferroviária internacional Madrid – Montpellier, mas com paragem em Barcelona, concorrendo assim com o serviço da Renfe entre aquela cidade e Madrid.

Por outro lado, Bruxelas não vê com agrado todas as tentativas que limitem a entrada de novos concorrentes naquilo que designa por “espaço ferroviário europeu único”, pelo que qualquer operador poderá sempre queixar-se à Comissão Europeia da existência de barreiras à entrada por parte dos estados membros.

E em Portugal?

Com paragens em Valença e Viana do Castelo, o comboio da Arriva também irá competir com a CP na linha do Minho. E sobre isso, a AMT (Autoridade da Mobilidade e dos Transportes) terá uma palavra a dizer.

Mas contactada pelo PÚBLICO, esta entidade diz que “não foi sujeito à apreciação da AMT qualquer projeto de novo serviço ferroviário de passageiros internacional” e que qualquer posição das entidades públicas competentes deve incidir sobre os termos concretos de qualquer requerimento, ao abrigo da lei, “e não sobre eventuais intenções”.

Juan Ignacio García de Miguel diz que não fez ainda nenhum pedido a Portugal porque o regulador espanhol o informou que se encarregaria da articulação com as autoridades portuguesas. “Por isso vou esperar e não vou subir nenhum degrau a mais nas escadas”, disse ao PÚBLICO.

Caso o assunto seja analisado em Portugal, haverá, porém, um hiato difícil de superar. É que, enquanto a CNMC tem um contrato objectivo para analisar, entre a Renfe e o Estado espanhol, a CP não tem qualquer contrato de serviço público com o Estado português, o que torna difícil medir até que ponto um operador estrangeiro poderá afectar o seu desempenho enquanto operador incumbente.

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