Uma tecnologia que usa luz para medir calorias ainda tem zonas cinzentas

Há uma nova geração de sensores de bolso que se ligam ao telemóvel e prometem mostrar as calorias, nutrientes e toxinas na comida. Mas a promessa não é cumprida a 100%.

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A luz que é absorvida e reflectida é usada para tentar analisar os alimentos PAULO PIMENTA / PUBLICO

Há cerca de um ano, Zoltan Kovacs, um especialista em análise de dados, esteve presente na cerimónia anual dos prémios do Instituto Europeu de Inovação e Tecnologia para mostrar como era possível descobrir as calorias, nutrientes e toxinas em qualquer alimento, apenas ao apontar-lhes um pequeno sensor do tamanho de um baralho de cartas. O processo – que o PÚBLICO viu de perto – foi demonstrado para chocolates, farinhas lácteas e maçãs, mas Kovacs não deixou ninguém experimentar o aparelho. Em 2017, o TellSpec era ainda um protótipo.

“O que queremos é mostrar que a forma como as moléculas reflectem a luz pode dar-nos informação sobre o alimento”, explicou na altura.

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Uma imagem promocional do TellSpec TellSpec

O sensor faz parte de uma nova geração de dietistas pessoais de bolso, criados para ajudar a controlar a qualidade e quantidade daquilo que se come, ao analisar o “espectro digital” das substâncias. Com um toque de botão, aparelhos como o TellSpec, o SCiO e o LinkSquare prometem fornecer informação específica sobre qualquer alimento – e enviar o resultado para o telemóvel – através da forma como a luz é reflectida na superfície. Apresentam-se como a solução para quem quer controlar o peso ou evitar toxinas.

Porém, o “se” ainda faz parte da equação, mesmo que vários destes aparelhos estejam já à venda na Internet (ou em fase de pré-venda, pelo menos) por valores entre os 250 e os 550 dólares (215 e 473 euros). Nas demonstrações, apenas os funcionários das empresas podem tocar nos aparelhos. Nas páginas das campanhas de financiamento colectivo, os comentários dos utilizadores dividem-se entre o fascínio e as queixas por atrasos na produção. Nos produtos que estão no mercado, os donos falam de aparelhos que fazem menos do que aquilo que prometiam.

“Ainda não temos um produto final pronto para o consumidor”, admite ao PÚBLICO Isabel Hoffman, a empresária canadiana com origens portuguesas que está por detrás do TellSpec. O aparelho foi inicialmente apresentado em 2013, para detectar toxinas. Numa campanha de financiamento colectivo, juntou 386 mil dólares. Mas a demora a produzir o aparelho fez com que a empresa fosse acusada de fraude e alvo da impaciência dos primeiros compradores, que estão há cinco anos à espera de receberem um sensor.

Hoffman garante que a tecnologia funciona. Doutorada em Matemática, começou o projecto em 2012 para ajudar a filha adolescente, que se tornou intolerante a vários alimentos depois de a família se mudar do Porto, onde Hoffman dava aulas de Matemática na universidade, para o Canadá. Com o TellSpec, em teoria, os espectros registados são enviados para um telemóvel e comparados com uma enorme base de dados de espectros online para determinar a qualidade de um alimento ou a presença de substâncias tóxicas.

“Nós não inventámos a espectroscopia. A tecnologia está a funcionar há mais de 150 anos”, frisa Hoffman. Tradicionalmente, é utilizada para analisar a superfície de astros fora da atmosfera terrestre. “Se conseguimos utilizar um aparelho para determinar informação sobre a superfície de astros com a luz, por que é que não podemos fazer o mesmo na Terra? Para mim, a grande questão sempre foi: será que posso criar algo pequeno e barato que faça isto?”

Desde 2013, a empresa publicou vários vídeos a demonstrar a sua visão do produto: um aparelho pequeno, colorido e leve. O problema é que as pessoas nem sempre viam as letras pequeninas no fundo dos vídeos, a alertar que “o dispositivo mostrado é um modelo em 3D a demonstrar o design futuro do aparelho”. Em 2018, a única versão disponível custa 1450 dólares e destina-se a cadeias de supermercados.

“Uma tecnologia por si só não pode ser uma fraude”, argumenta Giovanni Rateni, doutorado em bio-robótica e autor de vários textos sobre espectroscopia nos alimentos. “Uma fraude acontece quando alguém promete alcançar resultados que não correspondem à verdade, mas não se aplica a uma tecnologia por inteiro”.

Rateni descreve a espectroscopia como uma “abordagem promissora” para avaliar a qualidade dos alimentos. “É possível usar a luz, principalmente ultravioleta e infravermelha, sobre uma amostra para obter uma resposta a partir da quantidade de luz que é absorvida”, confirma o académico, mas diz que são precisos “métodos estatísticos complexos para descodificar a informação que surge no espectro”.

Isabel Hoffman reconhece que criar uma campanha de financiamento colectivo em 2013 foi precipitado. “Foi um pouco ingénuo da minha parte criar logo uma campanha no IndieGogo. Conseguimos 386 mil dólares, mas não era suficiente”, diz. “Em 2015, percebemos que seria muito difícil criar os sensores em massa. A versão que temos hoje custa cerca de mil euros. Está longe de ser um produto para o consumidor.”

O interesse no mercado, porém, está a aumentar. Dados da Photonics Media, uma analista que se foca em produtos que analisam a absorção e transmissão da luz, prevêem que os avanços na área, especialmente em dispositivos para o consumidor, dêem origem a um mercado de mais de mil milhões de dólares até 2021. O mercado dos wearables (aparelhos com que os utilizadores se podem equipar, como as pulseiras de desporto) já vale 5,8 mil milhões, de acordo com dados da analista Statista.

"Alertas vermelhos"

O SCiO – da empresa israelita Consumer Physics – é outro sensor que diz que se baseia em métodos de espectroscopia para avaliar os alimentos. Também começou por ser promovido num site de financiamento colectivo. A versão final, que se assemelha a uma lanterna em miniatura, já está à venda por 299 euros. Sem complementos adicionais ou acesso a extensas bases de dados, apenas promete avaliar o número de calorias num produto, os níveis de açúcar e a frescura.

“O nosso produto é maioritariamente para pessoas que se preocupam com os valores nutricionais dos alimentos”, explica ao PÚBLICO Dror Sharon, um dos fundadores do projecto. “Na minha opinião, detectar toxinas ou produtos a que alguém pode ser alérgico é algo que [estes sensores] não podem fazer. Para isso, um sensor precisa de avaliar fisicamente um alimento.”

Dror vê este tipo de aparelhos a tornarem-se populares com o desenvolvimento progressivo da tecnologia: “Quando comecei o meu projecto muitos diziam que as pessoas nunca iriam pegar num aparelho a meio de um jantar e aproximá-lo da comida. Hoje todos fazem isto para tirar fotografias com um telemóvel. Por que não com um sensor que permite ver as calorias?”

Giovanni Rateni, o especialista em bio-robótica, é mais céptico: “Vejo muitos alertas vermelhos. Recomendo muito cuidado para quem está interessado.” E alerta ainda que estes sensores não são uma boa forma de evitar alergénios como o glúten ou a lactose, ou de procurar toxinas. “É impossível garantir que um produto não tem glúten porque a porção que foi analisada não tem. Para se ter a certeza, é sempre preciso avaliar o produto todo”.

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