O Estado tem de proteger a vida

São questões estruturais na sociedade portuguesa: a facilidade com que podem usar armas e a violência doméstica

Na Figueira da Foz, um homem assassinou a mulher a tiro na terça-feira. Depois de estar em fuga cerca de 24 horas, o PÚBLICO noticiava que o homem tinha sido preso na quarta-feira. No mesmo dia, o Correio da Manhã acrescentava que a arma do crime era uma de duas caçadeiras que a GNR já tinha apreendido ao seu proprietário, quando este tentara suicidar-se, mas que tinha sido devolvida depois de o homem terminar um tratamento psiquiátrico a que foi submetido. Este assassínio levanta duas questões de fundo que são estruturais na sociedade portuguesa: a facilidade com que se adquirem e podem usar armas e a violência doméstica.

O Governo aprovou recentemente uma proposta de lei que enviou à Assembleia da República na qual transpõe uma directiva comunitária sobre questões técnicas ligadas ao armamento. Como a secretária de Estado adjunta da Administração Interna, Isabel Oneto, explicou, o Governo aproveitou para ir mais longe e regulamentar o sector, condicionando a detenção de armas com ou sem registo. Por exemplo, armas ditas para colecção ou detidas por razões afectivas, pois pertenceram a familiares, terão de ser desactivadas e cada caçador poderá ter apenas 25 armas (uma enormidade mesmo assim).

Esta lei tem sido contestada por diversas associações ligadas ao sector e foi mesmo alvo de lobbying da extrema-direita, que fez uma campanha enviando mails a deputados e eurodeputados atacando em termos insultuosos o comissário europeu Carlos Moedas, a eurodeputada Ana Gomes, a secretária de Estado adjunta Isabel Oneto, e o director do Departamento de Armas e Explosivos da PSP, Pedro Moura. É de saudar a atitude do Governo, na pessoa de Isabel Oneto, e deseja-se que o Parlamento não hesite na aprovação desta lei nem tente diminuir a exigência que nela é expressa, cedendo à pressão do sector ou da extrema-direita.

Mas a notícia de mais um assassínio de uma mulher pelo marido tem uma outra dimensão, o da violência doméstica. Esta é a 18ª mulher morta pelo marido, companheiro ou namorado, em Portugal este ano, segundo os dados do Observatório de Mulheres Assassinadas da União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR). A recorrência destes crimes mostra que alguma coisa não funciona em Portugal na prevenção e no controlo da violência doméstica e que por muito que tenha já sido feito há muito por fazer, sobretudo há que mudar o tipo de abordagem deste problema social.

Manuela Tavares, uma das principais activistas feministas portuguesas e fundadora da UMAR, defendeu em entrevista ao PÚBLICO na quinta-feira uma mudança radical: a prisão preventiva do agressor, à semelhança do que acontece em Espanha. “As situações de risco em que as mulheres ficam quando fazem as denúncias são muito graves, portanto, não basta pôr uma pulseira electrónica no agressor”, sublinhava para considerar que a “prisão preventiva era um acto muito importante”, até pela regularidade com que mulheres são mortas pelos agressores depois de serem vítimas de agressão e de terem apresentado queixa. E criticava as “ilusões de que um agressor possa regenerar-se com programas terapêuticos”, afirmando: “A ideia de que eles podem vir a ter outra vida porque ganharam outra consciência não dá. Isto são questões de mentalidades inculcadas, em que o agressor tem o poder, quer ter o poder sobre a mulher que é sua propriedade.”

O que está em causa em mais um assassínio de uma a mulher pelo marido obriga a reflectir não apenas sobre a necessidade de limitar o direito à posse de armas, mas também de rever os critérios penais sobre os agressores de violência doméstica. Como forma de fazer face a um problema de gravidade máxima em termos sociais e individuais, o da necessidade de o Estado cumprir um princípio básico de uma sociedade civilizada, o da protecção da vida.

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