Foi um homem que lhe deu o nome, mas a Pensão José das Hortas é assunto de mulheres

O histórico estabelecimento da Costa Nova tem conseguido resistir às mudanças dos tempos e das vontades. São cerca de cem anos de passado e uma certeza quanto ao presente e ao futuro: não podem tirar-lhe a palavra “pensão” do nome nem da fachada.

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Chegou a ser ponto de encontro e albergue de muitos fidalgos da região, que prolongavam a estadia por um mês. Hoje, os hóspedes são maioritariamente estrangeiros e não ficam além de uma semana. Mudaram-se os tempos e as vontades, mas a Pensão José das Hortas teima em continuar a fazer parte da história da praia da Costa Nova, em Ílhavo. Já lá vão cerca de cem anos – não se sabe, ao certo, em que ano entrou em funcionamento – e a avaliar pela determinação e pelo gosto que a actual proprietária da José das Hortas acusa, o futuro está assegurado. Pelo menos para as próximas décadas.

“Depois de mim, será a minha filha a tomar conta disto. E, mais tarde, será a filha dela”, garante Marília Reis Fonseca, actual proprietária da histórica pensão de praia. Contas feitas, com a sua neta, Maria Joana, será a sexta geração a assumir o negócio de família mantendo esta tradição peculiar: a administração é feita no feminino. “O único homem que fez parte da história desta casa foi o José das Hortas, meu tio-avô, que abriu a pensão e lhe deu o nome. Depois passou logo para as mulheres da família”, conta Marília. José Silva era o seu verdadeiro nome mas, “como tinha uma horta na zona de Vagos, tratavam-no por José das Hortas”, acrescenta.

A denominação ficou e é exibida no bonito painel de azulejos que sobressai da fachada. E, venha quem vier, dali ninguém a tira. “Está classificado e a Câmara Municipal de Ílhavo não permite que se retire o painel”, afiança a proprietária, sem deixar de notar que, desta forma, também se garante a continuidade da palavra “pensão”. “Tivemos de passar a ser Alojamento Local por força da lei, mas pelo menos no que toca ao nome continuaremos a ser sempre uma pensão”, vinca.

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Do palheiro ao adobe

Sem documentos que atestem a data exacta da abertura da casa de hóspedes, Marília Fonseca consegue recuar no tempo, pelo menos, uma centena de anos, fazendo contas à idade que teriam então alguns dos seus antepassados. E também cruzando aquilo que foi ouvindo com uma ou outra foto antiga e com um episódio que marcou a história da região – o salvamento do navio Desertas. “Começou por ser um palheiro, muito bem frequentado, e segundo contavam, foi o primeiro hotel da Costa Nova”, descreve a proprietária. Terá sido por volta de 1920 que o edificado em madeira deu lugar à construção em adobe que persiste até aos dias de hoje. “A pensão fez muito dinheiro na altura dos trabalhos do Desertas. Ficou cá muita gente alojada e arranjou-se a quantia necessária para fazer esta construção."

Foi em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial, que o navio a vapor apreendido aos alemães encalhou na praia da Costa Nova. Era preciso retirar a embarcação com cerca de 110 metros de comprimento do areal e a opção acabou por recair numa obra de engenharia notável e complexa: a abertura de um canal com 900 metros de comprimento e 30 de largura ligando o mar à ria de Aveiro para permitir que o Desertas – outrora designado Hochfeld – voltasse a navegar. Os trabalhos iniciados em 1918 acabaram por prolongar-se por mais de um ano e “trouxeram movimento e geraram riqueza nos botequins locais”, conforme escreve Senos da Fonseca, o autor do livro Costa-Nova-do-Prado, 200 Anos de História e Tradição. “Para lá dos que intervieram directamente nos trabalhos, juntaram-se ao corrupio os curiosos que permanentemente acorreram, motivados pelo insólito dos trabalhos e para admirar e registar um acontecimento histórico, irrepetível”, acrescenta o historiador ilhavense.

No caso concreto da Pensão José das Hortas, este “corrupio” traduziu-se no aforro de dinheiro suficiente para mandar construir uma casa de hóspedes com “nove quartos e uma casa de banho – cada quarto tinha um lavatório e um bidé, daqueles à moda antiga – e, no piso de baixo, duas salas de jantar, uma para as pessoas ditas mais civilizadas e outra para as pessoas mais modestas”, recorda Marília Fonseca. Nesse tempo, os hóspedes não vinham apenas para pernoitar. Era também ali que faziam as suas refeições e no caso concreto da José das Hortas ainda havia espaço para acolher alguns convidados. “Faziam-se aqui muitas caldeiradas e tertúlias, uma vez que a família tinha viveiros de enguias na ria de Aveiro”, testemunha a actual proprietária.

Quando passou para as mãos de Marília Fonseca, há 15 anos, o negócio perdeu as suas salas de jantar. Na verdade, perdeu todo o rés-do-chão. Por questões de partilhas, a Pensão José das Hortas ficou limitada ao primeiro piso e ao sótão, mas não perdeu o charme. Por fora e por dentro. O imóvel situado na principal avenida da Costa Nova, a José Estêvão, mantém o seu tom amarelo e a sua varanda de ferro, com vista privilegiada para a ria, decorada com vários vasos de flores.

“Até morrer vou investir”

Actualmente, a Pensão José das Hortas conta apenas com seis quartos, uma vez que Marília Fonseca optou por construir “mais casas de banho”. Um deles é ocupado por ela, de Junho até final de Setembro, o que não acontecia noutros tempos, quando o negócio era gerido pela sua tia e madrinha. “Só vínhamos para cá em Setembro. A época alta era para colocar isto a render o máximo que desse”, lembra. Ao contrário da sua antecessora, Marília Fonseca prefere deixar de alugar um dos quartos, porque aquela também é a sua “casa”, um espaço em que, mais do que clientes, “recebe hóspedes e amigos”. “Na maioria, alemães, franceses e suecos, alguns dos quais já considero amigos. E que recomendam, depois, aos seus conhecidos”, declara.

Cada peça de mobiliário ou de decoração foi ali colocada pela própria. “Recuperei o mais que pude do que já cá estava e comprei outras peças em lojas de velharias”, diz, sem deixar de notar que este é um processo que nunca dará por terminado. “Vou a algum lado, vejo uma peça de que gosto e acho que ficaria bonita aqui, e compro”, confessa. Na altura em que o PÚBLICO visitou a José das Hortas, Marília Fonseca estava às voltas com um tapete novo que tinha acabado de comprar na vizinha praia da Barra.

No primeiro piso, a aposta passou por uma decoração vintage, com camas de ferro, móveis e abat-jours a imitar o antigo. Já o sótão está todo forrado a madeira e decorado com motivos náuticos – quadros de nós de marinheiro, miniaturas de barcos e búzios. “Este ano, mandei construir uma protecção na escada para as crianças e já decidi que para o ano vou construir aqui mais uma casa de banho”, revela, enquanto nos faz uma visita guiada à pensão que esteve sempre nas mãos da família. “Esta casa faz parte do meu ADN e acho que até morrer vou investir nisto”, desabafa a antiga funcionária da Portugal Telecom, que aos 60 anos virou gerente da José das Hortas – “coincidiu ter de pegar nisto quando já estava reformada”. Um “bichinho” que acredita já ter passado à filha, Maria João, que diz estar preparada para “fazer o que sempre viu fazer”.

No final de Setembro, início de Outubro, Marília Fonseca fecha a porta – a Costa Nova, tal como tantas outras praias, é um destino de Verão – e ruma à sua terra, Vila Nova de Gaia: “Já não sei se sou de Gaia, se sou daqui. Foi aqui que nasci, mas fui morar para Gaia aos nove anos; e passo todo o Verão na Costa Nova.” Nos restantes nove meses do ano, a Pensão José das Hortas só abre mediante marcação prévia: “Tenho uma pessoa que trata da casa e, se compensar, vem cá abrir a pensão.”

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