Morreu Cavalli-Sforza, o cientista que acabou com o conceito de raça

O cientista italiano fundou uma nova área do saber, em que o estudo da distribuição geográfica de variantes genéticas permitiu reconstruir a expansão da humanidade pelo planeta.

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Cavalli-Sforza traçou o percurso da humanidade pelo planeta Luca Giarelli

Aos 96 anos, morreu o geneticista italiano Luigi Luca Cavalli-Sforza, que estudou o ADN e também as línguas das populações humanas para desvendar como, a partir de África, se espalhou a humanidade pelo planeta. Essa investigação ensinou-nos algo ainda mais profundo: que o conceito de “raça” não tem qualquer utilidade em termos biológicos.

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Aos 96 anos, morreu o geneticista italiano Luigi Luca Cavalli-Sforza, que estudou o ADN e também as línguas das populações humanas para desvendar como, a partir de África, se espalhou a humanidade pelo planeta. Essa investigação ensinou-nos algo ainda mais profundo: que o conceito de “raça” não tem qualquer utilidade em termos biológicos.

Desde sempre, os humanos, mesmo os que não eram Homo sapiens, como nós, tiveram um desejo inato de viajar e correr mundo, o que fez com que há cerca de 12 mil anos, quando surgiu o homem moderno e a agricultura estava prestes a começar, existissem humanos praticamente em todos os pontos da Terra, e todos fôssemos bastante parecidos geneticamente – pelo menos, todos da mesma espécie. A curiosidade de Cavalli-Sforza foi despertada por esta viagem, que procurou compreender.

Nasceu em Génova em 1922 mas fez carreira no Reino Unido, nos Estados Unidos (Universidade de Stanford, onde era professor emérito) e Itália (Universidade de Pavia, onde começou os seus estudos, no curso de Medicina). Estudou genética, quando o gene e os mecanismos da hereditariedade eram ainda um livro cheio de páginas em branco para os cientistas, e também estatística. Essa escolha poderia parecer um pouco heterodoxa quando ele era jovem, mas faz todo o sentido hoje em dia, com a ascensão da genómica – o estudo dos genomas, o livro de instruções dos seres vivos, escrito com letras feitas de ADN. 

A partir dos anos 1960, depois de ter trocado a genética das bactérias pela genética humana na década anterior, como explicou numa entrevista à Nature em 2007, Cavalli-Sforza começou a publicar os trabalhos que o tornaram célebre (ver Genes, Povos e Línguas, Instituto Piaget). Traçou as migrações em massa do passado remoto da humanidade não apenas através das escavações arqueológicas, como se fazia tradicionalmente, mas também procurando pistas no sangue dos humanos actuais. Tornou-se o fundador de uma nova área do saber, em que o estudo da distribuição geográfica de variantes genéticas permite, por exemplo, reconstruir a expansão da humanidade pelo planeta.

Cavalli-Sforza animou várias iniciativas de cooperação científica internacional, como o estudo do cromossoma Y e o Projecto de Diversidade do Genoma Humano – passar da leitura do genoma de uma única pessoa para a leitura de várias pessoas, para tentar compreender o que torna cada indivíduo “único e irrepetível”. Tem ADN de 1050 pessoas de 52 países de todo o mundo, guardado na Fundação Jean Dausset, em Paris – mas enfrentou a hostilidade de alguns povos indígenas, que acusaram os cientistas de biopirataria, sentindo que se apropriaram indevidamente do seu património genético.

Foi uma desilusão do cientista italiano, mas este é um campo minado e cheio de mal-entendidos culturais, dos quais não foi alheio Cavalli-Sforza. O investigador que mostrou a proximidade genética entre as populações humanas, reduzindo a raça a um conceito cultural sem justificação biológica, recebeu muito correio de ódio de supremacistas brancos, revelava a revista da Universidade de Stanford, num artigo sobre o seu professor emérito em 1999.