Isso pode acontecer aqui

Sinclair Lewis, o primeiro autor americano a receber o Nobel e o que mais vezes é denegrido, o tormento dos alunos nos EUA, está de regresso. O mundo finalmente alcançou o seu último grande livro, e o mais assustador, que, graças à Administração Trump, está rapidamente a reentrar no léxico das frases populares. Escrito em 1935, It Can’t Happen Here/ Isso não Pode Acontecer Aqui, previa a ascensão do fascismo na América.

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Este Verão, estava eu em Estocolmo a trabalhar neste texto, quando percebi que o meu computador estava com a bateria fraca, e tinha deixado o carregador em Helsínquia. Corri para um centro comercial perto do meu hotel para comprar um novo carregador. Quando chegou a altura de pagar, disseram-me que a minha carta de condução emitida pelo estado de Nova Iorque tinha caducado. Não era o suficiente para me identificar.

Apresentei o meu cartão de professor da New School University, e o empregado da caixa, com os braços cobertos de tatuagens, disse-me que não, que isso também não servia. “Vocês têm Google, não pode pesquisar-me no Google?”, perguntei. “Sou professor e pode ver a minha fotografia na Internet. Estou aqui para uma palestra acerca de um escritor norte-americano.”

“Não, lamento, não é possível.”

Visto isto, tive que voltar a correr ao meu hotel, peguei no meu passaporte e regressei à loja, onde enfim me permitiram comprar o meu carregador por 950 coroas suecas.

“E sobre o que trata a sua palestra?”, perguntou o rapaz das tatuagens.

“É sobre Sinclair Lewis, que em 1935 escreveu um livro que previa a ascensão do fascismo na América e que actualmente é considerado cada vez mais relevante.”

“Bem, não sei nada sobre isso”, respondeu o rapaz educadamente enquanto escrevia o número do meu passaporte no recibo de compra.

“Ele foi o primeiro americano a ganhar o Prémio Nobel da Literatura, em 1930”, continuei.

“Bem, isso parece muito importante. Desculpe, mas nunca tinha ouvido falar dele. Boa sorte, professor.”

Não consegui impedir-me de notar a imensa ironia presente na situação — chegar à Suécia e ter de explicar a existência de um escritor que há 88 anos chegou a esta mesma cidade e utilizou o seu discurso de aceitação do Nobel para explicar por que razão a América necessitava de desenvolver uma cultura literária. Por que razão patriotismo e burocracia acéfala não eram suficientes. Que, para competir num mundo de enorme estupidez e enorme entretenimento e diversão, a literatura tinha que ser muito mais real:

“Continuamos essencialmente a venerar os escritores das revistas populares, que, num coro sentido e edificante, proclamam que a América de 120 milhões de habitantes é ainda tão simples e tão pastoral como quando tinha apenas 40 milhões”, afirmou Lewis nesse mês de Dezembro, perante a Academia sueca. “Que, numa fábrica com 10 mil empregados, a relação entre o operário e o gerente continua a ser tão simples e próxima como numa oficina de 1840, com cinco trabalhadores; que as relações entre pai e filho, entre marido e mulher, são precisamente as mesmas hoje num apartamento num edifício de 35 andares, com três automóveis que aguardam a família lá em baixo e cinco livros nas prateleiras da biblioteca e um divórcio iminente na família na semana que vem, como eram essas relações numa cabana cor-de-rosa com cinco divisões em 1880; que, enfim, a América tem passado por alterações revolucionárias, de colónia rústica para império mundial sem ter minimamente alterado a bucólica e puritana simplicidade do Tio Sam.”

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Ao atacar as suas instituições, e o crescente abismo entre a vida americana e a literatura americana, Lewis expôs o fantasma de um novo tipo de literatura que estaria a surgir e que iria fechar esse buraco OSCAR WHITE/CORBIS/VCG VIA GETTY IMAGES

Ao atacar as suas instituições, e o crescente abismo entre a vida americana e a literatura americana, Lewis expôs o fantasma de um novo tipo de literatura que estaria a surgir e que iria fechar esse buraco e efectivamente seria muito mais realista. De facto ele estava certo, pois quatro pessoas que mencionou no seu discurso acabariam por ganhar o Prémio Nobel, desde Hemingway e O’Neill até William Faulkner, que tinha então publicado apenas dois livros. Mas antes era necessária uma limpeza, e essa necessidade óbvia forçou Lewis a enunciar a peculiar atracção e o peculiar nojo que a América provocavam. E concluiu com uma das mais verdadeiras declarações alguma vez proferidas acerca dos Estados Unidos. “O meu destino neste papel é constantemente estar a alternar entre o optimismo e o pessimismo, mas esse é também o destino de quem quer que escreva ou fale acerca de qualquer coisa na América — a mais contraditória, mais deprimente, mais agitada de todas as terras no Mundo nos dias de hoje.”

Isto teria sido difícil de escrever para alguém proveniente do Midwest americano, quanto mais dizê-lo em voz alta. Mas na realidade têm sido os midwesterns — esses supostos rústicos dos estados intermédios — que o têm dito desde o início. Desde Toni Morrison a Sherwood Anderson do Ohio, e Ernest Hemingway e Saul Bellow do Illinois, de Theodore Dreiser (Indiana) e Thornton Wilder (Wisconsin), de T.S. Eliot (Missouri) e Mark Twain (também do Missouri) até F. Scott Fitzgerald (Minnesota) e Willa Cather (Nebraska), a literatura norte-americana estaria perdida sem estas terras perdidas.

Mas o Midwest nunca foi uma terra perdida, apenas ganhou essa reputação graças a alguns dos factores que Lewis enunciou no seu discurso. Como o leitor talvez saiba, 1,3 milhões de suecos, 700 mil noruegueses e quase meio milhão de dinamarqueses chegaram à América entre 1821 e 1930, e muitos deles por lá ficaram, essencialmente fazendo trabalho agrícola mal pago ou em postos de operário bem remunerados em fábricas. Muitos assentaram no Minnesota, no Kansas e no Nebraska, e especialmente em Chicago. A maior população de dinamarqueses-americanos está na Califórnia, onde vivem cerca de 200 mil pessoas de ascendência dinamarquesa. Ainda subsiste um bairro sueco em Chicago — é Andersonville, onde se pode comprar panquecas suecas com groselhas ao pequeno-almoço ou sopa de ervilhas e arenque.

Durante algum tempo os historiadores acreditaram que muitos emigrantes da Suécia, da Noruega e da Dinamarca tinham sido atraídos para fazerem a travessia atlântica através de propaganda, distribuída pelas companhias de navegação, que estavam a baixar os custos dos bilhetes nos seus navios. Ao que se veio a perceber, na realidade a maioria dos panfletos não douravam a pílula no que se relacionava com a imagem dos Estados Unidos, simplesmente falavam das virtudes de determinadas companhias. A maioria da propaganda, se é que lhe podemos chamar isso, não falava a escandinavos sobre a América, mas sim falava à América sobre os americanos.  

Inspirados por Emerson e Thoreau, muitos dos textos populares mais vendidos do início do século XIX apresentavam a América como uma terra idílica, de pessoas vivendo em comunhão com a Natureza, num idílio agrário. Ou explorando as grandes vastidões de terra para domesticar o selvagem interior. Já agora, foi para destruir essa tradição que o escritor John Williams, também ele nascido e criado no Midwest e recentemente redescoberto, escreveu e publicou em 1960 Butcher’s Crossing, a história de um licenciado de Harvard que acaba por se encontrar numa cidadezinha do Missouri com a ideia de se aventurar para o Oeste numa caçada ao búfalo.  

A impiedosa exposição de Williams destrói este mito transcendental. Ele despacha o seu inepto herói para a vastidão selvagem no dorso de um animal sofredor que fica tão sedento que a sua língua tem que ser lavada com trapos. O guia é um vigarista, os trilhos são perigosos e rochosos e espinhosos, e quando finalmente alcançam uma manada de búfalos, dúzias deles estupidamente parados, ruminando erva, não existe nada de nobre ao alinhar as suas gigantescas cabeças nas miras das espingardas e ao abatê-los. É apenas um talho em escala industrial. Donde o título do livro [butcher: talhante, açougueiro].   

Era esta a realidade de como a América “domesticou o continente” — para usar uma frase que recentemente saiu da boca do actual presidente. A distância entre a fantasia de uma integridade agrária e os novos valores familiares americanos no Midwest e a realidade era igualmente grande. De facto, comunidades luteranas proliferaram, formando redes de amizade e fé fortes e organizadas, do Kansas ao Nebraska. Mas também era duro e solitário e as pessoas que vinham da Dinamarca, da Suécia e da Noruega passavam fome e sofriam discriminação. As fábricas em cidades como Chicago em grande medida não cumpriam regulamentos e na carne acabavam por aparecer dedos cortados — ou pior, como mais tarde percebemos através de Upton Sinclair, na sua novela em fascículos de 1906 The Jungle/A Selva.

Para além disso, o chicote da moral cristã a estalar na pele de um povo etnicamente diverso mas não racialmente integrado a viver numa nova terra levou a ataques de vergonha, sexismo e um racismo profundamente revelador. “Nada eleva tanto agricultor despejado e obrigado a trabalhar numa fábrica como ter alguma raça, qualquer raça, a qual  ele possa olhar de cima”, escreveria mais tarde Sinclair Lewis, com discernimento e, como acabou por se revelar, de modo profético.  

É por isso que estamos aqui, é por isso que nos interessamos de novo por Lewis. Vamos pôr as cartas na mesa: Sinclair Lewis, o primeiro americano a receber o Prémio Nobel e certamente o que mais vezes é denegrido, criador de termos como Main Street e Babbitt, o tormento dos alunos nos Estados Unidos assim como Thomas Hardy o é para muitos outros noutros lugares, o homem tão acabado que quando em 1930 recebeu uma chamada telefónica de um jornalista sueco em Nova Iorque pensou que estava a ser vítima de uma partida, pelo que Lewis replicou, imitando o repórter — “Ah, you haf de Nobell!” —, este Sinclair Lewis está de regresso às notícias porque o mundo finalmente alcançou o seu último grande livro, e certamente o mais assustador, It Can’t Happen Here/ Isso não Pode Acontecer Aqui, que, graças à Administração de Donald Trump, está rapidamente a reentrar no léxico das frases populares.  

Escrito freneticamente em quatro meses de 1935, e parcialmente inspirado pela planeada candidatura do governador do Louisiana Huey Long, face a Roosevelt, à presidência dos EUA, muitas vezes se pensou que It Can’t Happen Here/Isso não Pode Acontecer Aqui já estava desactualizado e obsoleto quando chegou a data de publicação. Long fora assassinado em Setembro de 1935 e Lewis, por essa altura, tinha já quase terminado o original. Mas Lewis foi também incitado a escrever o livro pela sua segunda esposa, a pioneira repórter Dorothy Thompson, que fora expulsa da Alemanha nazi em 1934 e que falava tantas vezes com o seu esposo sobre como o fascismo estava a alastrar pela Europa e para a América que os dois lhe chamavam apenas “aquilo”.

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Tudo acontece rapidamente no romance, tal como aconteceu na América recentemente. O livro inicia-se nos preparativos para as eleições presidenciais de 1936, quando Berezelius “Buzz” Windrip, um senador simplório, está a ponderar disputar com Roosevelt a nomeação presidencial nas primárias que se aproximam, afirmando que irá restituir ao país a grandeza perdida e dar a cada cidadão 5000 dólares por ano. As probabilidades estão claramente contra ele. Quando comparado com Roosevelt e a sua boa educação, Windrip surge como vendedor de banha-de-cobra, com o seu alegre acolhimento, o seu brilhante sorriso, enfim, um político untuoso da velha guarda que faz promessas a torto e a direito e espuma da boca ao telefone, com fúria e lisonjas.  Por trás da cortina, a gerir todo este caos, está Lee Sarason, o Karl Rove [ex-chefe da Casa Civil de Trump] de Windrip, um celibatário com olho de águia que assegura aos mais importantes executivos e banqueiros que existe de facto uma estratégia por trás da oratória simplória de Windrip, e possivelmente também um ou dois pontos ambíguos quando afirma que irá atacar os bancos.     

A observar tudo isto está Doremus Jessup, editor de um jornal do Vermont e apoiante de Roosevelt que se apercebe do que se está a aproximar, mas vive numa pequena cidade, no meio de um grupo de banqueiros e políticos despreocupadamente anti-semitas e que também reconhecem que o candidato republicano, Walt Trowbridge, não tem pujança. Enquanto Trowbridge oferece factos e sensibilidade, Windrip instila medo e emoções e ódios. Windrip divulga um plano de 15 pontos na convenção do Partido Republicano (em Cleveland, claro) e entre as suas propostas inclui diminuir e limitar os rendimentos e o emprego dos negros, consolidar o poder do Executivo presidencial, e algumas sugestões de que a mulher devia regressar ao lar que não destoam no livro de Margaret Atwood Handmaid’s Tale/A História de uma Serva.    

É fascinante como muitas destas mensagens codificadas racistas e sexistas não nos remetem para Huey Long, mas fazem-nos lembrar imediatamente de Donald J. Trump. O facto de muitas das sugestões da plataforma eleitoral de Windrip se contradizerem umas às outras não parece incomodar Windrip, tal como as mudanças nas alianças de Trump não parecem incomodar o actual presidente. Tanto Trump como Windrip têm um grupo de conselheiros que dirigem as indústrias que estão prestes a começar a regulamentar. Windrip, como Trump, acredita na “superioridade de alguém que possua um milhão de dólares”, escreveu Lewis. E continua nesse registo.  

Em campanha pela estrada Windrip é um animal, e Lewis — isto se ainda não o leram — compreende o jardim zoológico que é a política norte-americana. Os mecanismos de dar e receber, de agradar a pessoas publicamente com palavras que estas apenas compreenderão em privado. As multidões e o barulho, o aplauso ciclónico a perfeitas idiotices. O comportamento da horda e o zumbido da tensão violenta. Windrip, tal como Trump, é um homem de ferro, pronunciando dez discursos por dia, 600 antes das eleições numa era anterior às viagens de avião a jacto, suando, lisonjeando, intimidando, hipnotizando com frases eloquentes e slogans e uma espécie de nevoeiro que permanece após o fim do espectáculo. Após o que ninguém sabe o que foi dito mas o efeito é divertido. O seu espectáculo é uma porcaria, muitos sabem disso, mas sempre é melhor do que receber lições, é quase sensível na sua falta de sentido.    

Quando o radialista Peter Paul Prang promete arrastar os seus vários milhões de apoiantes entre os Forgotten Men [americanos pobres dos anos 30 que necessitavam de auxílio governamental] para a luta no campo de Windrip, aquilo que parecia ser uma tentativa de candidatura presidencial com poucas hipóteses torna-se uma realidade e depois, numa convenção dividida, que se prolonga por toda a noite — Jessup e os seus amigos ficam fascinados quando uma criada negra lhes serve ovos mexidos e cerveja —, finalmente nasce o dia e, de alguma forma, Windrip ficou em primeiro lugar.

“Apesar de Doremus estar certo da eleição de Windrip”, escreve Lewis a partir da perspectiva do seu herói, “o acontecimento foi como que o muito temido falecimento de um amigo.”   

E aqui a realidade e a irrealidade misturam-se num estranho emaranhado. Os primeiros dias do regime de Windrip são tão espantosamente semelhantes aos do de Trump que parecem, lendo agora, como uma repetição. Como uma série que esquecemos que já tínhamos visto e começámos a ver outra vez. Rapidamente Jessup agarra o máximo de poder executivo possível enquanto bandos de autodenominados milicianos (os Minute Men) vagueiam intimidando e espancando opositores. Tal como aconteceu em Charlottesville, quando Trump se recusou a condenar os nacionalistas brancos com archotes, Windrip distancia-se das tropas de choque mas não as irá enfrentar ou detê-las. Entretanto, o seu gabinete enche-se de políticos corruptos que começam a encher os seus bolsos e a misturar poder empresarial e corporativo com poder político a um tal ponto que são chamados de “Corpos”.

Parece-vos familiar?

E por aí fora, em direcção a uma guerra de diversão com o México, a edificação de campos de trabalho, e uma linha de caminhos-de-ferro subterrânea que conduz resistentes para o Canadá, sendo esta uma causa a que Walt Trowbridge, estranhamente, se dedica. É de ficar com pele de galinha, e o povo norte-americano também achou isso em 1936, pois o livro vendeu 300 mil exemplares, o que permitiu a Lewis regressar às luzes do estrelato dos bestsellers, e a MGM comprou os direitos para adaptação ao cinema e iniciou o planeamento da produção, até investidores alemães no estúdio terem esmagado o projecto. Entretanto, foi encenada na Broadway uma peça, na qual Lewis — como já anteriormente Dickens — iria interpretar o papel principal. No total a produção esteve em cena 260 semanas, numa altura em que Hitler começava a rugir. Na altura não aconteceu aqui, mas aconteceu no outro lado do Atlântico, e isso não foi consolo para Lewis ou os americanos quando o pior chegou e passou. Lewis não era propriamente um patriota, mas acreditava que a América podia fazer mais e melhor. E não fez, até que foi obrigada a fazê-lo.  

Lewis interessava-se pela política, empenhava-se e comprometia-se com causas, mas não era um agitador de multidões nato. Tinha nascido no que ele descreveu nas declarações do banquete do Prémio Nobel como o nosso mais “escandinavo estado do Minnesota”, na pequena vila de Saulk Centre, em 1885, filho e neto e sobrinho de médicos. Passou a sua infância enterrado em livros, intensamente desajeitado devido à sua altura e aos problemas de pele, devido aos quais foi escarnecido. Como mecanismo de defesa desenvolveu competências de um excelente imitador. Na famosa frase escrita por Gore Vidal sobre Lewis, ele era “feio como uma gárgula: cabelo ruivo, fisicamente descoordenado, sofria de acne que se tornou cancerígeno devido aos primitivos tratamentos com raios X”.

Lewis pensava que a vida iria ser mais fácil na Universidade de Yale, para onde o seu pai o enviou, mas onde apenas encontrou snobismo e arrogância da Costa Leste. Dado isso, enterrou-se cada vez mais no trabalho, produzindo pequenas peças e poemas lúgubres e sentimentais. Sentiu os perigos de um governo burocrático e autoritário a infiltrarem-se, pelo que tirou uma licença da universidade em 1906 e passou vários meses na Quinta da Utopia de Sinclair Lewis em New Jersey, colocando madeira e carvão em fornalhas e escrevendo na sombra do colossal sucesso de Sinclair com The Jungle/A Selva, que estava a acabar de ser publicada pelo Daily Worker [jornal do Partido Comunista em Nova Iorque].

O radicalismo e a atracção que exerce iriam a partir daí aparecer em muitos dos livros de Lewis. Reconheçamos que não era um génio nato ou um letrista nato, mas Lewis sabia que tinha muito a aprender, e estava com pressa de começar. Após se ter licenciado alternou entre o Iowa e São Francisco, trabalhando em jornais, e até numa revista para surdos em Washington, uma publicação que era patrocinada por Alexander Graham Bell, o inventor do telefone. Fez todas as coisas que um jornalista faz no começo de carreira, e não só. Vendeu ideias a Jack London, 15 por 70 dólares; com um pseudónimo, David Graham, escreveu um livro popularucho só para ganhar dinheiro; escreveu textos para catálogos; fez crítica literária. Acabou por não ser jornalista, mas teve a educação não sentimental de um jornalista.   

Escrevia furiosamente. Cinco novelas anódinas surgiram na década de 1910, a maior parte delas abarcava os primeiros tempos da aviação, um período no qual ele se casou e começou a vender contos para jornais e revistas. Estava sempre a fazer contactos e em rede, como dizemos hoje, dedicando livros a pessoas conhecidas, sacando elogios de vencedores do Prémio Pulitzer, fazendo amizade com escritores longínquos (como Edith Wharton) e abusando dos seus mentores. Upton Sinclair aparece completamente em It Can’t Happen Here/Isso não Pode Acontecer Aqui, numa altura em que Lewis já se tinha moderado em relação a ele, mas nos anos 1910 ainda lia os manuscritos de Lewis.   

“Pareces-me um dos escritores mais curiosamente desequilibrados que já conheci”, escreveu Sinclair a Lewis num Verão. “Escreves páginas e páginas de material interessante, e depois escreves um monte de conversa que é simplesmente um desperdício absoluto, sem qualquer objectivo ou valor; e parece que não consegues reconhecer a diferença. Tudo o que tenho lido teu é cerca de metade de cada. sempre que escreves acerca do submundo estás no teu melhor, e quando sobes até ao teu próprio nível social ou ainda mais alto, não prestas.”  

Lewis enfrentou a crítica construtiva como o faria qualquer outro imitador: alterou o tema, para encontrar um movo modelo para imitar. Em 1910, ele e a mulher  tinham-se mudado para Washington, onde começaram a dar-se com a classe abastada da capital. Em 1916 foi visitar a casa da família no Minnesota, pela primeira vez em muito tempo, e percebeu a forma rude e maldosa como o seu pai tratava a sua mãe. Olhando para trás, a primeira esposa de Lewis achava que foi daí que surgiu a ideia para Main Street/Rua Principal.

Contando a história da vida de Carol Milford e a sua mudança de uma grande cidade (Minneapolis) para Gopher Prairie, no Minnesota, o livro aceita a licença que Theodore Dreiser e Sherwood Anderson tinham dados aos escritores americanos  e rasga a capa de uma imaginária distinção e delicadeza da vida nas pequenas cidades americanas. Carol sente-se alternadamente aborrecida, chocada e aterrorizada com os hábitos das pessoas de Gopher Prairie, que no início parecem ser simpáticas, se bem que algo chatas, mas que ao aproximar-se a Primeira Guerra Mundial cruelmente isolam um dos cordiais suecos da terra, Miles Bjornstram, o que mais tarde vem a ter um resultado trágico.

Lewis tinha finalmente descoberto a sua especialidade. Todas as piadas, a conversa barata, a lógica circular e a claustrofobia da América rural ganham vida em Main Street/ Rua Principal. A vergonha sexual; os joviais trocistas no Rotary Club. Lewis escreveu como eram na realidade, e os norte-americanos leram como se fosse sátira bem-intencionada, engoliram tudo, tinham agora confiança suficiente neles próprios enquanto nação para apreciarem serem ridicularizados, pelo que compraram o livro às pazadas, dois milhões deles no primeiro ano. Na sequência deste sucesso os Lewis fizeram a primeira de muitas visitas à Europa, e Lewis começou a planear o seu próximo livro, que viria a ser a sua obra-prima, Babbitt.

Os anos 20 foram efectivamente a década de Lewis. Não que ele tenha sido o melhor escritor desse período — certamente Woolf e Joyce e Yeats estarão acima dele. Mas a peculiar mistura de vandalismo económico, força de produção e recentemente descoberta mobilidade social, bem como a necessidade de reflexão, tornaram a América um local espectacularmente vívido para ser observado e para os americanos lerem sobre ela. Eles queriam ler sobre eles próprios, e nos anos 20 Lewis deu aos seus compatriotas cinco inequivocamente grandes vislumbres, desde os horrores das pequenas cidades em Main Street/ Rua Principal às idiotices do promoção entusiástica em Babbitt (1922) aos problemas de um médico idealista em Arrowsmith (1925), mais tarde levado ao cinema por John Ford, à hipocrisia da nascente direita evangélica em Elmer Gantry (1927), e finalmente ao consumismo oco dos erros antes da queda da Bolsa em Dodsworth (1929).

Nenhum deles pinta um retrato muito lisonjeiro da que se tornara recentemente a nação mais rica do Mundo, mas, por alguma razão, os norte-americanos aceitavam isso, desde que vindo de Lewis. Talvez Gore Vidal estivesse certo quando dizia que “o segredo de Lewis e do seu público era que ele estava em comunhão com eles” — papel mais tarde retomado por John Updike (que estava sempre a lembrar-nos de que crescera durante a Grande Depressão, e deixou claro que “Rabbit” [de Rabbit, Run, romance de 1960] provinha de Babbitt) e Jonathan Franzen. Mas ambos estes escritores possuem um toque de crueldade, conseguimos vê-los a ajustarem as lentes bifocais enquanto examinam o espécime. Por mais impiedoso que Lewis possa ter sido no que toca às tendências dos americanos, acerca das desigualdades produzidas pelo seu sistema económico, do sexismo do seu país — de facto, escreveu um livro sobre o feminismo na década de 40, estava sempre a escrever sobre temas candentes —, sentimos que Lewis pelo menos estaria a tentar perceber as suas personagens, mais do que a tentar atacar-nos com elas, ou a atacá-las com elas próprias. Ele gostava delas e escreveu através delas, não acerca delas. Quando  lemos as conversas de George Babbitt acerca do tempo com os seus vizinhos em Zenith, Minnesota, é difícil não imaginar que elas foram escritas por um homem que tinha tido uma ou outra conversa dessas. Que sentia que existia uma complexa decência no ritual, sintetizado pelo simples e muito conhecido na altura slogan do ex-presidente Garfield: “Não deite abaixo, apoie.” Era um local imperfeito, deprimente, fascinante e entediante, tal como o é ainda hoje, e uma grande parte de Lewis queria defendê-lo com o aviso que ele tão claramente emite em It Can’t Happen Here/ Isso não Pode Acontecer Aqui.   

John Freeman é editor da revista literária Freeman’s

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