Narizes vermelhos, uma operação que dá vida

Podemos, de facto mudar o mundo dos outros, trazer esperança e dias melhores, rasgos de felicidade que parecem mesmo intemporais. Os Doutores Palhaços e a Operação Nariz Vermelho fazem isso da forma mais bonita possível, com o caminho mais difícil de trilhar.

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Marco Gil

Os rostos conheciam nomes para lá dos narizes. Naquele momento, eram o Joel e o Pedro, duas vidas para outras tantas.

Começámos por onde eu gosto de fazer os inícios: pelas histórias. O Pedro abriu a conversa e contou-me que estas são incontáveis, não há uma marcante porque todas conhecem um rumo impactante, são todas tão distintas como particulares. Ele foi pai e a coragem poderia refugiar-se, mas mesmo assim continua a querer dar gargalhadas às crianças no limite da vida.

Descobrir-lhes sorrisos entre as dores e o cateter ou sentir no olhar de um pai o alívio dos cinco minutos seguintes. O Pedro é entusiasmante e palhaço, também é psicólogo, tem sotaque do norte e pinta-se enquanto falamos.

O Joel é menos expansivo, mas isso muda quando se agarra ao nariz vermelho. Já era palhaço muito antes de o ser. É intenso e sente-se, pela alma com que fala, mas sobretudo por ter dedicado a vida a isto, é expressivo como poucos. Não precisa de dizer nada para poder ser tudo. Tem um nariz feito por ele, parecia de barro, mas só soube que tinha amor. O Joel vai ser pai e não sabe se quer continuar.

Hoje, são eles os Doutores Palhaços no IPO: caracterizam-se enquanto falo com eles e uma hora depois saímos dali sem que conheça os sítios por onde vamos passar. Só não contamos com as emoções, com as pessoas, mas, sobretudo, com as emoções das pessoas.

Eles vão dispostos a mudar-lhes o dia, levam alegria e a força que lhes falta. Foi com confiança que entrámos no corredor que dá espaço às primeiras pessoas, vejo dor e rostos caídos nas mãos que os tentam empunhar. As expressões mudavam ao ritmo de sons e gestos tomados pelos dois Doutores Palhaços de serviço. Não é fácil descrever um rosto abatido que se abre para o sorriso e num instante se alheia do espaço e dos problemas, mas garanto-vos que é uma sensação grandiosa.

O tempo parecia ter parado e a dor diminuía, são reticências que se opõem aos pontos finais, era a exclamação de um episódio suave. Meia dúzia de corredores, duas salas de espera, um elevador para o sétimo piso e pessoas cabisbaixas e, mais tarde, surpreendidas foram o caminho ténue de baixos e depois altos, que nos levou à realidade mais dura: as crianças.

Os Doutores Palhaços entraram primeiro, o exemplo vem da piada — ou assim pareceu — e eu recuei perante o impacto de ver no imediato crianças que possam estar a sofrer. Aos mais sensíveis, o choque inicial pode ser doloroso mas o Joel e o Pedro estão ali pelas crianças, focam-se em cada gargalhada retida e no coração que acelera de efusividade.

Começam por se informar junto da equipa médica sobre todos eles, cada criança é um caso particular de atenção e merece um cuidado minucioso ao ponto de quererem saber como podem brincar. Aproximam-se das crianças ainda sem estarem perto delas e conhecem-lhes os detalhes sem sequer iniciarem o contacto. É sensibilidade. Aquilo pareceu-me especial: individualizar os sonhos é das causas mais bonitas a que damos acesso.

As primeiras gargalhadas vieram de um quarto ao fundo do corredor, não quis espreitar para não interromper aquela ligação que se começava a criar entre eles e o João, mas a sonoridade era contada em decibéis de felicidade. Podia sentir-se e não apenas escutar-se.

O poder que eles têm naqueles minutos é inenarrável, começam por se aproximar, perceber a reacção dos pais à presença deles e depois criam intimidade com as crianças, sem pressa mas com intensidade, sem ritmo mas com a cadência de quem põe tudo no lugar certo, de quem volta a arrumar os sonhos e a permitir horas felizes.

Conseguem sentir a gargalhada de uma criança que tem um cancro e meia dúzia de tubos ligados ao corpo, que se alheia de tudo, até do ar preocupado do pai, e ri até se conseguir atropelar no próprio riso? Desta vez espreitei: vi o pai que se ria do riso do filho, literalmente, e isto pode ser tão arrepiante como mágico. Conheci-lhe de novo a força no olhar e percebi que, ainda que por um breve período de tempo, a descrença não se voltava a apoderar dele. Não vi tubos, voltei a ver alívio.

Aquela sintonia de gargalhadas foi das coisas mais bonitas que já vi. Fazer com que aquelas crianças possam, por instantes, esquecer-se do que lhes dói, do sofrimento ou do cateter: é contagiante. Foi tão forte que todos renovávamos forças.

Não há capítulo que possa acrescentar a uma história como aquela e não há memória que possa esquecer aquela criança, com o pai ao lado da cama a rir em uníssono num dos melhores retornos que a vida lhes dava.

Os narizes vermelhos compunham um recital de boa disposição em pleno internamento pediátrico e a Sílvia aparecia afoita entre um triciclo e um frasco de soro no corredor, a curiosidade obrigava-a a espreitar ou a sorrir.

As crianças conhecem de cor as visitas dos palhaços ao hospital porque lhes diminuem a dor (a física também) e, se não tiverem tido tratamentos agressivos, aguardam ansiosamente por eles.

O João e o pai ainda se ficaram a rir um para o outro quando os obreiros deste feito viravam atenções para o David, que ao fundo do quarto não esboçava expressão, de auscultadores teimou em ignorá-los até à altura em que aquele riso de dentro lhe tomava conta dos sentidos. O pai finalmente suspirava; acredito que também ele temia por este refúgio por parte do filho. Não tirou os olhos do iPad, mas pude sentir-lhe as batidas do coração por bluetooth.

Por onde passavam emergia alegria e chegados aos quartos isolados estava um menino com menos de dois anos. Os Doutores Palhaços começaram a cantar-lhe através do vidro, baixinho, porque este parecia estar sem forças para os acompanhar, até que num vislumbre de magia este lhes acenava para que entrassem; com ele estava a mãe que se emocionava. Como não puderam entrar, começaram a cantar-lhe através das frestas da fechadura da porta.

Como é que um momento destes pode ser tão doloroso e maravilhoso ao mesmo tempo? Ele ganhava forças enquanto os tinha ali, diante de um vidro que os separava mas os unia como nunca. Por 20 minutos aquele menino não esteve isolado, mesmo estando. O vidro não podia separar o amor que chegava num nariz vermelho.

O André assistiu a tudo desde o corredor, sentado numa cama, ria-se e olhava-nos através da esperança que vinha dos olhos verdes e um sotaque açoriano carregado; a ala pediátrica de oncologia em internamento era, de repente, um local de felicidade, onde o coração nos arrebatava tanto que sentíamos a melhor das energias. A expressão era um sorriso partilhado por todos numa corrente sem paralelo. Era o mesmo sorriso. Os pais respiravam fundo e as crianças voltavam a sê-lo.

Podemos, de facto mudar o mundo dos outros, trazer esperança e dias melhores, rasgos de felicidade que parecem mesmo intemporais. Os Doutores Palhaços e a Operação Nariz Vermelho fazem isso da forma mais bonita possível, com o caminho mais difícil de trilhar.

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