A história de Larry Heard é a história da música house

Lenda da música de dança, homem discreto, músico relutante, autor de alguns dos títulos mais marcantes de sempre da house, o americano Larry Heard, ou seja Mr. Fingers, vai estar este domingo no festival Lisb-On, que arranca esta sexta-feira, em Lisboa, com St. Germain ou Todd Terje.

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In the beginning was Jack
And Jack had a groove
And from his groove came the groove of all grooves
And while one day viciously throwing down in his box
Jack boldy declared: ‘Let there be house’
And house music was born…
(Can you feel it, Fingers Inc., 1986)

De todos os temas que fizeram a história dos primórdios da música house, Can you feel it, dos Fingers Inc. (o músico-produtor Larry Heard e a voz de Robert Owens), lançado em 1986, continua a ser talvez o mais emblemático. Não é apenas o tom profético da voz que enleva, é também a sonoridade deep-house que mantém a frescura de sempre.

Este domingo quando Larry, 58 anos, através do pseudónimo Mr. Fingers, pisar o palco do festival Lisb-On, em Lisboa, que começa já esta sexta-feira no Parque Eduardo VII, certamente que essa música não irá faltar no alinhamento. Ouvir-se-ão gritos, haverá mãos no ar, celebrar-se-á. É provável que ele esboce um sorriso. Mas manterá a sobriedade que o caracteriza. Ele pode ser uma das figuras mais relevantes de sempre da música house, mas não é o hedonismo a qualquer preço que o movem.

Bem pelo contrário. “Para a maior parte das pessoas, ainda mais na actualidade, a música house parece ser algo que as leva a exteriorizar. Percebo isso. Mas para mim sempre foi algo de íntimo e introspectivo”, diz-nos ele, via Skype. Percebe-se que não é de muitas falas. “A minha forma de comunicar é através da música”, dirá mesmo a certa altura.

E quando lhe perguntamos como vive alguém que preserva o recato, numa sociedade de excesso comunicacional e de ubiquidade musical, como a actual, é directo: “Não vivo muito bem. Existe música por todo o lado, não entendo, é preciso silêncio também. Tal como é preciso ter experiências intensas. Quando as pessoas passam o tempo a fotografar-se e aos outros, enquanto ouvem música, estão atentas? Não creio.”

Dançar não é com ele. E por favor, não lhe tentem arrancar uma pose para a fotografia. “Estar num clube ou num festival é algo social, mas é também da intimidade de cada um e parece-me que isso deveria ser respeitado.” Dito assim, pode parecer que é um tipo distante e desenquadrado. Nada disso. Todos os que com ele privaram ao longo de décadas lhe apontam a simplicidade na forma de estar como marcante.

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Em Lisboa, para além de teclas, computador e mesa de mistura, terá a seu lado o cantor Mr. White que colabora vocalmente numa série de canções do seu mais recente álbum

Tem é uma ética e um entendimento próprio da cultura da música de dança. Ao longo de décadas nunca deixou de lançar discos marcantes e ainda em Abril editou, como Mr. Fingers, o excelente álbum Cerebral Hemispheres, o primeiro com o seu mais famoso pseudónimo em 24 anos, compêndio de sonoridades sonhadoras, misto de atmosferas envolventes, elementos jazzísticos e dinâmicas rítmicas alicerçadas no house mais langoroso, que vem agora mostrar ao vivo a Lisboa. Ou seja, nunca deixou a actividade musical. Mas também nunca fez muito dinheiro com ela. Por isso foi tendo ao longo dos anos vários empregos.

“Foram alturas esquizofrénicas da minha vida”, ri-se ele. “Durante a semana, para os meus colegas, eu era apenas mais um cidadão incógnito sem nada de especial, o que bem vistas a coisas está certo. E aos fins-de-semana, quando actuava em alguns clubes, era visto como alguém muito importante e abordado como se fosse uma celebridade.”

Não exagera. Perguntem ao francês St. Germain, ao norueguês Todd Terje, ao alemão Michael Mayer, ao holandês Antal, ao americano Kerri Chandler ou aos portugueses Pedro e João Tenreiro, que irão actuar no Lisb-On ao longo dos três dias do evento, qual a relevância de Larry para a sua própria actividade e é certo que ouvirão palavras de reverência.  

A música house parece ter estado sempre dividida entre duas ideias dominantes. A ideia da procura de si próprio e de uma identidade, no interior da house. E a ideia de sair de si próprio, de perder o controlo, numa demanda que nos faça sair da house. Não surpreende que, para os adeptos da primeira proposição, como Larry, os direitos das minorias, a tolerância, a fraternidade e o misticismo, estejam sempre presentes.

Existe na maior parte dos temas dele, em nome próprio, ou como Mr. Fingers ou na qualidade de Fingers Inc., a procura de algo maior. Basta ouvir canções como Mystery of love (1986), que Kanye West samplou em Fade (2016), Another side (1988), Bring down the walls (1987) ou A path (1987), para o perceber. Parecem temas eternos. O visionário músico de jazz Sun Ra dizia que não lhe interessava o futuro, mas sim o infinito, que inclui o passado, o presente e o futuro. A música de Larry é atravessada pelo mesmo entendimento. Não espanta que para a maior parte dos entendidos, ele tenha sido fundamental na afirmação do chamado deep-house, uma variação mais aprofundada e romantizada do house, onde a soul e o jazz acabam por ter uma influência primordial. Ou os blues. “Não me surpreende que digam que a minha música tem um toque emocional melancólico. Acho que isso vem dos blues. E também de Chicago nos anos 1980. Naquela altura, não era uma cidade luminosa como nos queriam fazer acreditar. Era até bem deprimente e sórdida.”

Se o tecno haverá de estar sempre associado à cidade de Detroit, no caso da música house o epicentro foi Chicago. Na primeira metade dos anos 1980, depois de um período de fulgor comercial, a música disco parecia agonizar lentamente, embora paradoxalmente de uma forma quase silenciosa clubes nova-iorquinos como o Paradise Garage, DJs como Larry Levan ou editoras como a Salsoul e a Prelude garantissem uma segunda idade de ouro a nível criativo ao género, criando as bases para o surgimento da house. E acabou por ser em Chicago, no clube The Warehouse, para onde se havia mudado o DJ nova-iorquino Frankie Knuckles, que a coisa ganhou proporções mediáticas. Nesse clube, para um público predominantemente gay, tanto Knuckles como Ron Hardy, através de uma mistura de disco, electro ou tecno-pop europeu, acabaram por criar as condições para que a música house germinasse, fazendo sobressair o bombo, as linhas de baixo redondas e hipnóticas, alguma sofisticação orquestral e o ritmo puro e minimalista dos temas. 

Foi nesse contexto que Larry cresceu, embora sair à noite não fosse muito com ele. “Trabalhava de dia para ajudar a família ou tocava à noite, era complicado, mas de vez em quando conseguia sair”, diz, de forma lacónica. Mas isso não o impediu de criar música. Anos antes, havia feito parte de várias bandas de jazz e rock como os Infinity. Era baterista. Agora utilizava o gira-discos ou a caixas de ritmos e em 1985, ao lado das primeiras edições do género, como Funk you up de Jessie Saunders, Waiting on my angel de Jamie Principle ou Move your body de Marshall Jefferson, lá figurava Mystery of love assinado por Mr. Fingers. Na maior parte desses temas surgia o termo Jack, correspondendo à dança inspirada pelo novo ritmo e por extensão, Jackin’ boy, que era a designação dos apaixonados do género que acudiam ao The Warehouse ou a outros clubes da cidade como o Power Plant ou o Music Box.

“Toda a gente fala do The Warehouse, mas para mim o Music Box acabou por ser mais importante, correspondendo a um período em que conseguia sair para ouvir a minha música num clube. De alguma forma Ron Hardy foi uma inspiração, porque comecei a trabalhar com as máquinas da mesma forma que ele misturava. Eu vinha da música de fusão, tocava bateria e teclas, e foram essas experiências no Music Box que alteraram a minha percepção de como se podiam fazer as coisas.”

De todos os impulsionadores do género Larry é o mais completo e o que possui uma trajectória mais sólida, influenciando sucessivas gerações. Na segunda metade dos anos 1980, de forma solitária ou com os Fingers Inc. (primeiro com Robert Owens e depois também com Ron Wilson) ou The It (com o cantor Harri Dennis), haveria de elaborar uma música dançante, mas ao mesmo tempo etérea, nada frenética, profundamente elegante. São dessa altura os álbuns Another Side (1988), dos Fingers Inc., um dos registos mais importantes da house, ou Amnesia (1989), este como Mr. Fingers, tratado de house ambiental, com qualquer coisa de litúrgico e espiritual, ou o tema Washing machine (1986), que para muitos acabou por prenunciar o surgimento do acid-house anos depois.

Em 2001, quando Robert Owens passou por Lisboa para gravar um videoclipe com o inglês Photek, falámos com ele e, na altura, dizia-nos que a dissolução dos Fingers Inc. se deveu mais a pressões editoriais do que a divergências entre os dois. “Ele disse isso?”, interroga Larry. “E é verdade, foi um momento conturbado porque na Europa existia grande interesse à volta desta música, mas nos Estados Unidos não. A música era um salto no escuro. Tinha um emprego seguro [trabalhava na Segurança Social] e não era claro o que fazer com isso, mas a relação com Robert foi sempre muito boa.”

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“Por vezes perguntam-me como é que encaro os desenvolvimentos tecnológicos na sua relação com a música. Por mim, está tudo bem. Mas mais importante é a humanidade e identidade de cada um estar inscrita na música."

É isso. Enquanto o mercado americano olhava com indiferença para o house e tecno – uma injustiça só parcialmente colmatada nos últimos dez anos –, era na Europa que, nos anos 1990, florescia a cultura da música de dança. Houve quem beneficiasse economicamente desse facto. Mas não Larry. Foi sempre um músico e produtor relutante. E embora nos anos 1990 tivesse lançado muitos outros discos significativos, como Alien (1996), ou os dois volumes de Sceneries Not Songs (1994-95), fez saber em 1997 que se iria reformar da música.

Motivo? Ocupar-se do sistema informático de uma empresa de Memphis, para onde se havia mudado e onde habita ainda hoje. Na verdade, acabou por não abandonar a música, continuando a lançar em nome próprio excelentes álbuns (Genesis de 1999 ou Love’s Arrival de 2001), mas fazendo-o de forma mais espaçada. O mesmo acontecendo com as viagens para mostrar a sua música. Foi sempre um performer resistente. É por isso que gosta de ter sempre alguém ao seu lado. Em Lisboa, para além de teclas, computador e mesa de mistura, terá a seu lado o cantor Mr. White que colabora vocalmente numa série de canções do seu mais recente álbum, viagem épica de 18 temas onde existe um de título curioso: A day in Portugal. “Surgiu apenas como metáfora daqueles países que, nesta actividade, conhecemos numa viagem em apenas 48 horas, ou seja, que acabamos por não conhecer”, ri-se ele.

Desta feita haverá mais tempo para conhecer Lisboa e Portugal. Mas definitivamente o mundo industrial da música – fazer discos, promovê-los, andar em digressão – não lhe interessa muito. “Prefiro fazer as coisas à minha maneira, com o meu ritmo, nas condições que imponho a mim mesmo”, justifica. “Ser muito conhecido nunca foi um objectivo. Chegar a Tóquio, à Austrália ou a Portugal e haver uma ou outra pessoa que conhece o meu trabalho e foi inspirado por ele, é suficiente”, afirma.

“Por vezes perguntam-me como é que encaro os desenvolvimentos tecnológicos na sua relação com a música. Por mim, está tudo bem. Mas mais importante é a humanidade e identidade de cada um estar inscrita na música. Se daqui a alguns anos ainda houver pessoas que se revejam no meu trabalho será um motivo de satisfação para mim. E é tudo.”