Carta Aberta à Administração da RTP

A RTP não pode aceitar que uma série co-financiada por si seja adulterada desta forma. Esperamos que accione todos os meios legais contra a Al-Jazira.

Conforme foi amplamente noticiado neste Verão, o canal de notícias Al-Jazira, sediado no Qatar, permitiu-se retransmitir a série intitulada Rotas da Escravatura (uma série europeia, apoiada por fundos comunitários, de cuja lista de produtores, encabeçada pelo canal francês Arte, fazem parte a RTP e a LX Filmes), omitindo, porém, o capítulo inicial da mesma: “641-1375 — Para além do deserto”, onde se examinava “o processo que levou o Império Muçulmano a tecer de forma duradoura uma imensa rede de tráfico de escravos pela África, Médio Oriente e Ásia”. Tudo isto para, de forma enviesada, defender a “tese” de que, “no começo, (a escravatura) foi um projecto português. Os portugueses acabavam de sair das Cruzadas, durante as quais tinham levado a cabo uma guerra terrível contra os muçulmanos. Uma parte da aventura (portuguesa) em África visava, aliás, protegê-los dos muçulmanos e manter uma vantagem sobre estes”.

Que existam “historiadores” portugueses dispostos a defender esse tipo de “teses”, como se tem assistido a propósito da polémica em curso em torno da criação do Museu dos Descobrimentos, por iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa, não nos surpreende — infelizmente, tornou-se algo de banal (apenas para dar um exemplo: na série em causa, António de Almeida Mendes, da Universidade de Nantes, qualifica o Infante D. Henrique como “o líder de um bando de salteadores”). O que não pode ser banalizado neste caso, porém, é o papel da RTP — Rádio Televisão Portuguesa. Sendo uma empresa pública, ao serviço do Estado português, a RTP não pode aceitar que uma série co-financiada por si seja adulterada desta forma. Esperamos, por isso, que a RTP accione todos os meios legais contra o canal de notícias Al-Jazira.

Obviamente, não escamoteamos o papel que Portugal teve no tráfico de escravos e aceitamos que essa dimensão seja assinalada no futuro Museu dos Descobrimentos (independentemente da questão do nome do museu, que está ainda aberto, em virtude da referida polémica). Desde, claro está, que esse fenómeno seja devidamente contextualizado. Infelizmente, a escravatura foi um fenómeno tão antigo quanto a história da humanidade, que se estendeu a todas as eras e a todos os continentes — mesmo a tão celebrada Grécia Antiga, um dos berços maiores (se não o berço maior) da nossa civilização, não foi, nesse plano, excepção. Se, no século XXI, podemos e devemos continuar a celebrar a Grécia Antiga, não precisamos, para tal, de escamotear o fenómeno da escravatura. Analogamente, podemos e devemos, no século XXI, apesar do fenómeno da escravatura, continuar a celebrar as viagens marítimas dos portugueses, desde logo por todos os progressos científicos que essas viagens proporcionaram à humanidade.

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