Uma dádiva de Amália

Durante três horas a Amália cantou para mim os standards americanos de que mais gostava de Gershwin, Ellington, Rodgers, Porter, Arlen e Carmichael.

Há um episódio da minha vida que não consigo contar sem medo de passar por mentiroso. Foi uma viagem de comboio que fiz com a Amália, do Porto para Lisboa. Durante três horas a Amália cantou para mim os standards americanos de que mais gostava de Gershwin, Ellington, Rodgers, Porter, Arlen e Carmichael.

Eu tinha as letras todas por causa dum livro meu sobre as canções do cinema musical americano. A Amália conhecia as canções muito bem, de tanto ouvi-las em filmes e discos, cantadas por Sinatra, Fitzgerald, Billie Holiday, Fred Astaire.

Amália era uma génia da música, mas sentir de perto a facilidade com que cantava tudo era como testemunhar uma sucessão de milagres.

Os grandes criadores por muito exímios que sejam numa especialidade (o fado, o jazz) são sempre a incarnação da música como música, livre de todas as amarras.

Passava-lhe uma folha com My Shining Hour, ela cantava e eu ficava estupefacto com a beleza que lhe saía da boca.

Foi há 25 anos mas os anos nada fizeram para atenuar a sorte imensa daquela proximidade de Amália, a divertir-se tanto com a sua própria perfeição, a cantar os standards que a minha mãe (inglesa) me ensinou com a única voz que o meu pai (português, de Alfama) adorava.

A seguir cantou mais quatro canções também com letra de Johnny Mercer. Ficou cheia de pena quando começámos a aproximar-nos de Lisboa, por todas as canções e memórias delas que iriam ficar de fora.

Eu continuei em transe durante uns dias e ainda entro em transe cada vez que penso nisso.

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