Há falta de médicos em 80% dos blocos de partos do país

Apenas metade dos 1400 especialistas em ginecologia/obstetrícia está no SNS, mas tutela diz que número de especialistas está a aumentar. E 60% dos que trabalham nas urgências têm mais de 50 anos.

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Nelson Garrido

Os problemas não são de agora mas agudizaram-se neste Verão: as urgências de obstetrícia, os chamados blocos de parto dos hospitais públicos, estão a rebentar pelas costuras. Sucedem-se as ameaças de demissão de chefes de serviço, multiplicam-se as transferências de grávidas e os especialistas já alertam para o risco de aumento da taxa de cesarianas. Na base dos problemas está, sobretudo, a falta de recursos humanos.

O colégio da especialidade de ginecologia-obstetrícia da Ordem dos Médicos (OM) fez as contas e concluiu que “cerca de 80% das equipas” das urgências de obstetrícia apresentam “um défice permanente de recursos médicos”. Ao longo da última década, calcula, o “défice teórico” nos “serviços de urgência/blocos de parto” evoluiu ao ritmo de menos 20 especialistas por ano.

E se o défice actual de recursos humanos é “ligeiro a moderado” em 70% das situações, em 10% já é considerado “grave” pelo colégio da OM, que, num documento em que traça “o panorama geral das urgências de obstetrícia do país”, destaca os casos dos hospitais de Amadora-Sintra, de Braga e de Faro, onde as equipas deveriam ter pelo menos cinco médicos em permanência e dispõem de apenas três (em Braga e em Faro) e de dois, no Amadora-Sintra.

No período de férias ou se um elemento da equipa adoecer, a situação complica-se ainda mais. Em Julho, os chefes de equipa de ginecologia e obstetrícia do Amadora-Sintra (Hospital Fernando da Fonseca) apresentaram uma carta de demissão em que davam 15 dias à administração para resolver os problemas. Num sábado desse mês, apenas um especialista e um médico interno (metade do mínimo exigido) asseguraram a urgência e foi necessário transferir grávidas.

Na carta, os demissionários sublinhavam que as condições de assistência na urgência ultrapassaram “os limites mínimos de segurança aceitáveis para o tratamento de doentes críticos”. O hospital abriu, entretanto, um concurso para a contratação de médicos tarefeiros.

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Admitindo que são necessários pelo menos cinco médicos, o gabinete de comunicação do Amadora-Sintra adianta que o prazo para entrega de candidaturas terminou esta semana. Mas o secretário-geral do Sindicato Independente dos Médicos, Jorge Roque da Cunha, defende que a administração está “apenas a tapar o sol com a peneira” e lembra que “saíram dez médicos” do hospital nos últimos dois anos. “As equipas estão depauperadas”, lamenta.

O caso do Amadora-Sintra não é único. Uns dias antes, no início de Julho, soube-se que a Maternidade Alfredo da Costa (MAC) - integrada no Centro Hospitalar de Lisboa Central - fora obrigada a transferir grávidas para outras unidades devido à falta de profissionais e de camas.

Confessando-se exaustos e queixando-se da falta de recursos humanos, os chefes de equipa da urgência da MAC ameaçaram demitir-se e avisaram que iriam deixar de fazer horas extraordinárias. Unidade de última linha, a MAC recebe grávidas de risco de outros hospitais.

Para João Bernardes, presidente do colégio da especialidade de ginecologia/obstetrícia da OM, este é um cenário desde há muito tempo anunciado. Nos últimos dois anos, como descreve na síntese da situação, estas urgências têm estado “de uma forma geral em pré-ruptura, com períodos de ruptura, por falta de recursos humanos”. A OM está entretanto a preparar um documento exaustivo que será apresentado à tutela em breve, adianta.

Metade dos especialistas no privado

Portugal até tem muitos especialistas nesta área, acima do rácio de muitos países europeus. São cerca de 1400, mas apenas cerca de metade estão no Serviço Nacional de Saúde (SNS), sublinha. Em média, pelas contas da OM, na última década saíram do SNS cerca de dez especialistas por ano. Como ao mesmo tempo foram contratados 15 especialistas em cada ano, o saldo até seria positivo, mas o problema é que no mesmo período passaram para o escalão com idade igual ou superior a 55 anos (idade a partir da qual os médicos estão dispensados de fazer urgências) cerca de 25 por ano.

O gabinete do ministro da Saúde adianta que o número de especialistas em ginecologia-obstetrícia aumentou nos últimos anos. Passou de 804, em 2015, para 832, em 2016, e em Julho deste ano ascendia a 862. Frisa ainda que no último concurso foram abertas 30 vagas para esta especialidade. 

Actualmente mais de metade dos especialistas de ginecologia e obstetrícia no SNS têm já 55 ou mais anos e, se considerar os que têm 50 ou mais anos (e estes estão dispensados de fazer urgências à noite), a percentagem sobe para 60%. Há muitos médicos com mais de 50 anos e muitos médicos jovens, os internos que estão a fazer a especialidade e que é preciso formar. “É uma espécie de bossa de camelo”, ilustra João Bernardes.  

“O que falta nos serviços é a geração intermédia, que foi muito ‘puxada’ para os privados, ao mesmo tempo que houve uma paragem de entradas no público”, explica igualmente Nuno Clode, que dirige o serviço de obstetrícia do Hospital de Santa Maria. O número de partos está a diminuir, mas há cada vez mais partos complicados no SNS, porque as mulheres têm filhos cada vez mais tarde. E há muita patologia a que é preciso dar resposta, o trabalho não se restringe aos blocos de parto, “as urgências de ginecologia estão cheias”, observa.

“A entrada de médicos para os quadros foi muito comprometida nos últimos dez anos”, corrobora Luís Graça, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal. Apesar de se terem formado muitos especialistas nos últimos anos, um grande número foi trabalhar para o sector privado, onde podem ganhar “o dobro”. 

Pelas contas de João Bernardes, seria preciso que entrassem 25 especialistas por ano no SNS, talvez mesmo “um pouco mais nos primeiros anos”, para resolver os problemas gerados pelo envelhecimento crescente. “Durante uns anos vai ser um sufoco”, antecipa.

“Há problemas há muito tempo, agora estão mais agudos”, acentua também Alexandre Valentim Lourenço, que lidera o Conselho Regional do Sul da OM. Na área metropolitana de Lisboa a situação é mais complicada porque, além de os três grandes hospitais privados terem ido “buscar os especialistas mais activos”, as unidades que abriram nos últimos anos em parceria público-privada (PPP) - Loures, Cascais e Vila Franca de Xira - também roubaram especialistas aos grandes hospitais da capital.

A situação só não é mais grave porque os hospitais recorrem a médicos em prestação de serviço (os chamados tarefeiros) e a horas extraordinárias para além das que estão previstas na lei e porque há especialistas com 55 ou mais anos que continuam a fazer urgências. Mas o recurso a tarefeiros, que ganham mais a trabalhar à tarefa do que os médicos do quadro dos hospitais, tem gerado perversidades. Há profissionais que “saltam de hospital para hospital, o que é muito disruptivo”, critica Alexandre Lourenço. 

Mais cesarianas?

A OM alerta também para outro risco, o de a taxa de cesarianas aumentar, “se as equipas não estiverem dimensionadas para dar resposta em 15 minutos aos casos emergentes e em três horas aos casos urgentes”. Nestes casos, as indicações para cesariana “terão de ser colocadas em fases mais precoces do trabalho de parto”. Desta forma, avisa, “hospitais que apresentem valores de taxas de cesariana em trabalho de parto da ordem dos 25% poderão passar a ter valores da ordem dos 30 a 40%”.

“Esta parece ser a situação de alguns dos hospitais com taxas de cesariana mais elevadas do país, com valores de 32% a 40%, associadas a equipas mais pequenas e/ou carenciadas, como os serviços da Guarda, Nordeste, Cova da Beira, Trás-os-Montes, Fernando da Fonseca e Norte Alentejano”, exemplifica.

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