A simpatia de estranhos

O mundo é um lugar estranho e maravilhoso, o que não quer dizer que esteja isento de perigos. Coisas más acontecem em qualquer lado e, às vezes, todos os cuidados e planeamentos não chegam para nos proteger.

Tenho tendência para acreditar que as coisas vão correr bem. Que as pessoas, em geral, são boas e que nada de catastrófico vai acontecer, seja qual for o canto do mundo em que me encontro. Isto podia ser só uma convicção, e já seria legítima, mas não é. Pequenas memórias sem grande importância (para os outros, pelo menos) assaltam-me assim que penso no assunto.

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Tenho tendência para acreditar que as coisas vão correr bem. Que as pessoas, em geral, são boas e que nada de catastrófico vai acontecer, seja qual for o canto do mundo em que me encontro. Isto podia ser só uma convicção, e já seria legítima, mas não é. Pequenas memórias sem grande importância (para os outros, pelo menos) assaltam-me assim que penso no assunto.

A primeira tem mais de 20 anos e leva-me à Rua Augusta, em Lisboa. Era sexta-feira à tarde, eu ia a correr para apanhar o autocarro para o Porto (que ainda saía do Campo das Cebolas), mas precisei de parar numa caixa automática para levantar dinheiro para o bilhete. Introduzo o cartão na ranhura, nem me lembro se cheguei a digitar o código, só da mensagem que apareceu no ecrã a dizer que o cartão fora retido pela máquina. O banco já fechara, mas havia funcionários lá dentro. Bati à porta insistentemente, já a começar a desesperar com a perspectiva de não poder ir para casa e de ter de ficar o fim-de-semana inteiro em Lisboa, sem dinheiro.

O homem que abriu a porta ouviu-me, eu já de lágrimas nos olhos, aflita. Não havia muito a fazer. Liguei para casa, tentámos encontrar alternativas para resolver o assunto, mas ao final do dia de uma sexta-feira, naquela altura, tudo era complicado. Sem me conhecer de lado algum, o funcionário do banco acabou por me dar dinheiro do próprio bolso para que eu pudesse regressar ao Porto. Fiquei sem saber o que dizer, excepto que na segunda-feira ali estaria para lho devolver, como aconteceu.

Não foi caso único na capital. Num final de um dia de estágio, numa altura em que andava particularmente cansada, parei numa loja de conveniência para levar para o quarto uma fatia de pizza que ia ser o jantar. Ao pagar, reparei que a caixa tinha duas fatias e alertei o funcionário, que sorriu e disse que sabia, aceitando o dinheiro de apenas uma fatia.

Há poucas semanas, depois de dois dias particularmente complicados de novo em Lisboa, no comboio de regresso a casa pedi jantar, mas, depois de recolher o pedido, o funcionário voltou para trás, dizendo que se esquecera de avisar que o pagamento com cartão não estava disponível, que esperava que isso não fosse um problema. Era, porque tinha pouquíssimo dinheiro comigo. Disse-lhe que não fazia mal, mas ele insistiu que eu não ficaria sem jantar por causa disso. Passado uns minutos regressou com um colega que ia abandonar o comboio com destino a Braga, no Porto, como eu. “Eu pago o jantar e o meu colega sai consigo e pode levantar dinheiro e entregá-lo a ele”, disse. Insisti que não era preciso, que ia para casa e que assim que chegasse desenrascaria algo para comer. Mas a sua simpatia soube bem.

A outra lembrança que me leva a continuar a acreditar que, em geral, o mundo e as pessoas são locais benévolos aconteceu em Luxor, no Egipto. Estava alojada na margem esquerda do Nilo, a oposta à das grandes atracções turísticas, pelo que tinha de apanhar o ferry para a cidade diariamente. Daquele lado, não havia grandes comodidades, mas havia uma loja onde se vendia a preciosa água engarrafada para ajudar a suportar o calor, que era imenso. Só lá tinha ido uma vez quando, na segunda visita, percebi que só tinha notas de valor elevado e o comerciante não tinha trocos. O homem não hesitou: leve a água (levem, éramos quatro pessoas, todas com o mesmo problema) e paga depois. E, uma vez, em Gdansk, na Polónia, ao volante de um carro alugado, dei por mim a entrar num pequeno troço pedonal, num dia de festa com vias cortadas e confusão geral. Parei, sem saber o que fazer. As ruas estavam cheias de gente e a via onde podia circular estava poucas dezenas de metros à frente. E então um homem, apercebendo-se do que se passava, coloca-se à frente do carro, abre os braços, começa a falar alto e a afastar as pessoas, para que pudesse seguir em frente, até à zona permitida.

De certeza que já tive más experiências, mas não me lembro delas. Lembro-me destas e sem qualquer esforço. Lembrei-me delas de novo quando, há poucos dias, li a notícia dos quatro ciclistas que foram mortos, aparentemente pelo ISIS, no Tajiquistão, quando andavam só a passear. A história chegou ao The New York Times e foi reproduzida por vários jornais, incluindo o PÚBLICO, porque duas das vítimas mortais eram um casal norte-americano que decidira abandonar tudo para percorrer o mundo de bicicleta, contando as suas aventuras num blogue.

Foto
Vasco Célio (Arquivo)

Jay Austin e Lauren Geoghegan, ambos de 29 anos, iam no 369.º dia de viagem quando foram mortos. Cerca de uma semana antes de morrer, Jay tinha escrito no blogue: “Lemos os jornais e somos levados a acreditar que o mundo é um local enorme e assustador. As pessoas, segundo essa narrativa, não são confiáveis. As pessoas são más. São terríveis. Não acredito nisso. A maldade é um conceito de faz-de-conta que inventamos para lidar com as complexidades dos outros seres humanos que têm crenças, valores e perspectivas diferentes das nossas… Na sua maioria, as pessoas são bondosas. Egoístas, às vezes, míopes, sim, mas bondosas. Generosas, maravilhosas e bondosas. Não houve maior revelação do que esta nesta viagem.”

Sabendo o que aconteceu a Jay e Lauren, e também ao holandês Renne Wokke e ao suíço Markus Hummel, as outras duas vítimas mortais do ataque, podemos ser levados a pensar na ironia cruel de tudo isto. E que afinal Jay estava errado. Mas eu ainda acho que ele estava certo e prefiro acreditar que o homem que se despediu do emprego para ir percorrer o mundo de bicicleta com a namorada também continuaria a achar o mesmo se pudesse ser ouvido hoje.

O mundo é um lugar estranho e maravilhoso, o que não quer dizer que esteja isento de perigos. Coisas más acontecem em qualquer lado e, às vezes, todos os cuidados e planeamentos não chegam para nos proteger. Renne Wokke, de 56 anos, que viajava com a companheira que ficou ferida, escolheu aquele caminho para Teerão para evitar os perigos de ter de atravessar o Afeganistão. Coisas más acontecem. Mas também acontecem a quem fica fechado em casa. Melhor respirar lá fora, porque o mundo vale a pena ser visto, e confiar que tudo vai correr bem.