Amor, desamor e castigo. Cada emigrante teve a sua razão para ir

De Chaves era fácil deixar Portugal “a salto”. Entre os anos 1960 e 70, foram daqui milhares em direcção a França e aos EUA. Para as gerações seguintes, sair foi sempre um caminho.

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Domingos Morais emigrou para fugir à guerra colonial Adriano Miranda

Eduardo Ferreira ainda demorou uns minutos a perceber o que lhe estava a acontecer. Tinha acabado de entrar no café e já o puxavam para se sentar à mesa. “Quando fui para a América, ainda o encontrei na fronteira de Espanha”, atira António Chaves, explicando porque chamou o amigo à conversa. São praticamente da mesma idade. O primeiro tem 63 anos, o segundo é um ano mais velho. Conheceram-se na infância ali, em Santo Estêvão, uma aldeia a meio caminho entre Chaves e a fronteira.

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Eduardo Ferreira ainda demorou uns minutos a perceber o que lhe estava a acontecer. Tinha acabado de entrar no café e já o puxavam para se sentar à mesa. “Quando fui para a América, ainda o encontrei na fronteira de Espanha”, atira António Chaves, explicando porque chamou o amigo à conversa. São praticamente da mesma idade. O primeiro tem 63 anos, o segundo é um ano mais velho. Conheceram-se na infância ali, em Santo Estêvão, uma aldeia a meio caminho entre Chaves e a fronteira.

A última indicação na estrada nacional antes de virarmos em direcção a Santo Estêvão mostra Espanha a oito quilómetros. Com o limite do país tão próximo, era fácil sair. “Daqui nem precisei de passador”, conta Chaves. Foi “a salto”, numa altura em que os rapazes da sua idade dificilmente deixavam Portugal de outra forma — os que ficavam acabariam a alimentar a guerra colonial.

Chaves atravessou Espanha até à fronteira com França, onde quem o ajudou a sair do país o mandou aguardar, já do outro lado, junto da estação dos comboios. “Quando lá cheguei, os outros ainda não estavam lá, mas estava lá este e o pai dele.” Aponta de novo para Eduardo Ferreira, que já trabalhava em Paris desde a adolescência.

“Foi uma casualidade”, acrescenta António Chaves, que nunca esqueceu esse encontro com o amigo de infância. Não era, porém, uma improbabilidade. Da aldeia — vila desde 2004 — saíam, por esses dias, centenas de pessoas para a emigração. Santo Estêvão tinha quase 2000 habitantes no início da década de 1960. Duas décadas depois tinha menos de 700. Hoje, permanecem 600. Nas décadas de 1960 e 1970 emigrou-se muito a partir daqui, sobretudo para França e Estados Unidos.

António Chaves saiu em 1973. Tinha 19 anos e trabalhava nas margens do rio Tâmega, de onde retirava areia que depois era vendida para a construção: “Não havia maquinaria. Era só uma pá e o corpo. Um trabalho duro.” Contudo, o motivo da decisão de emigrar nem foi o emprego. “Há aqui uma história”, começa por dizer, enquanto coloca um ar solene. “Se calhar conheci uma rapariga que vivia na América.” Sorri.

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Uma paixão levou António Chaves a fugir para os EUA Adriano Miranda

Fernanda também é de Santo Estêvão. Naquele Verão de 1973 começaram a passear juntos durante as férias dela. Antes de a ver voltar aos EUA, onde vivia com os pais desde criança, António disse-lhe: “Qualquer dia vou lá ter contigo.” Mantiveram contacto nos meses seguintes até que ele saltou a fronteira com Espanha, entrou em França e dali partiu para o Canadá, antes de chegar aos arredores de Nova Iorque, nos EUA.

Por lá, começou por trabalhar nos serviços de manutenção de um hospital e foi operário numa fábrica da General Motors até 1987, quando se estabeleceu por conta própria. Abriu um restaurante de comida portuguesa, que ainda se mantém aberto, no condado de Westchester, a norte do bairro de Bronx — “Da minha casa a Manhattan é tão longe como daqui a Chaves.” E a história com a moça, correu bem? “Até ver. Já passaram 45 anos. Temos seis netos.”

Ao contrário de António Chaves, Eduardo Ferreira ainda não trabalhava quando saiu de Santo Estêvão. Tinha 14 anos e foi para os arredores de Paris “de castigo”. Explica: “Eu era puto e o meu pai já tinha algum dinheiro. Eu queria que ele me comprasse uma motorizada.” Em vez disso, recebeu uma bicicleta. Chateou-se. Decidiu que não queria continuar a estudar e o pai, que trabalhava em Paris desde o início da década de 1960, levou-o com ele.

Quando chegou à capital francesa, foi viver para o bidonville do vale do Marne, a sul da capital. Ainda tardou uns anos a encontrar uma casa para onde pudessem ir a mãe e os quatro irmãos que tinham ficado em Portugal. Ferreira acabou por retomar os estudos em França. Fez formação para ser ajudante de contabilista, mas passou pouco tempo por esse emprego — “pagava mal”.

Foi conduzir camiões de longo curso até 1986, quando decidiu voltar a Portugal. Não queria que os filhos crescessem em França, mas foram também os filhos que lhe trocaram as voltas, cinco anos volvidos. Não quiseram ficar no país de origem. A família acabou por voltar a Paris, onde se estabeleceu por conta própria, numa firma que monta placas de pladur.

E a motorizada, chegou a tê-la? “Comprei-a eu. Uma Casal 5 velocidades, das primeiras que saíram”, responde. A moto custou “sete contos e meio”. Mais de 20 anos depois, vendeu-a por “50 contos”. O gosto das motos acompanhou-o sempre. Hoje tem 13, entre scooters, moto 4 e motos de grande cilindrada. Para o ano quer fazer a Estrada Nacional 2 entre Chaves e o Algarve em cima de uma.

Saída evidente

Se às vezes é o amor que leva as pessoas para longe da terra, como aconteceu com António Chaves, também há quem tenha saído por causa do desamor. Helena Morais, 34 anos, tinha um filho pequeno e acabara de se divorciar quando, no início da década, decidiu partir. Era também o tempo em que a crise económica tinha chegado. Apesar de ter mantido o emprego numa loja de comércio na cidade de Chaves, o orçamento doméstico ficara apertado.

“Na altura nem pensava em emigrar”, contextualiza. “Tinha uma vida razoável, uma casa, mas depois as coisas não correram bem.” Foi para Paris, onde já vivia o irmão. O pai também tinha sido emigrante, durante mais de uma década, no Canadá —“A primeira vez que o vi já tinha sete anos.” Os tios e primos também estão quase todos fora de Portugal. “Com tanta gente emigrada, a emigração parece-nos sempre uma boa saída quando alguma coisa corre mal”, diz.

À porta do café Frade, onde encontrarmos Helena Morais, ouve-se falar francês, inglês e espanhol. Estamos em Curalha, outra aldeia do concelho de Chaves, esta a sul da cidade. A povoação é atravessada pela Estrada Nacional 103, à qual se encostou o café. Debaixo da cobertura que abriga a esplanada, as famílias ocupam todas as mesas. É aqui que os emigrantes da aldeia se encontram no final do dia, nestas semanas em que regressam às suas origens para passar férias.

Estão lá os que saíram nas décadas de 1960 e 70 e os filhos e netos destes, mas também casais mais jovens, entre os 30 e 40 anos, que saíram daqui nos últimos anos, face à falta de oportunidades de emprego. Os destinos começaram a diversificar-se. Já poucos vão para os EUA. Há quem encontre o seu futuro em Espanha (sobretudo no País Basco) ou, cada vez mais, na Suíça.

Helena Morais optou por um país mais tradicional para a emigração apenas porque tinha o irmão por perto em França. Nos primeiros oito meses, não conseguiu arranjar trabalho, enquanto se debatia com a adaptação à nova língua. Fez formação profissional e hoje dá apoio domiciliário a idosos e pessoas com problemas psíquicos. Pensa voltar? “Vai depender dele.” Aponta para o filho, que corre pelo meio do café com um braço engessado, fruto de uma queda nestas férias.

José Joaquim Palhares, 72 anos, raramente fez depender as suas opções de alguém. O sumário de lugares por onde andou parece mais o de um aventureiro do que o de um emigrante tradicional. Saiu da aldeia na adolescência para tirar um curso de hotelaria em Lisboa, onde trabalhou na restauração. Depois esteve na Marinha durante quatro anos e meio até que decidiu seguir muitos dos seus conterrâneos em direcção a França.

Ali, trabalhou na construção, com o cunhado, Domingos Morais, 62 anos, com quem o encontramos à porta de casa. Morais foi “a salto” para os arredores de Paris com 17 anos, fugindo ao destino traçado de combater na guerra colonial. “Do meu ano, fomos 10 ou 12 na mesma altura”, afirma.

É a hora da missa na pequena igreja desta aldeia de 500 pessoas. Uma mulher de calças fluorescentes e camisa florida aproxima-se da porta, alcança um cabo e faz soar o sino. Nos minutos seguintes, começam a chegar fiéis. Quase todos mulheres.

Palhares passou dez anos em França. “Fartei-me daquilo.” Regressou a Lisboa, onde abriu uma “casa de pasto” com um sócio, que manteve durante seis anos. Depois decidiu tentar a vida nos EUA. Também foi o interesse por uma mulher que conheceu em Lisboa que o fez atravessar o Atlântico, mas não fala muito sobre isso. “Eu escrevia um livro...”, suspira.

Na América, onde ainda tem sobrinhos e outros familiares, passou por Nova Iorque, Nova Jérsia, Virginia e Carolina do Norte. Mais uma década a percorrer os EUA, intercalando empregos na construção e na restauração. E depois cansou-se: “Aborreci-me e vim embora.” “Comigo foi sempre assim: nunca estou bem no sítio onde estou”, continua José Joaquim Palhares.

Depois de 35 anos fora de Curalha, voltou à terra e não mais dali saiu. Abriu um café mesmo em frente da igreja, o que lhe valeu problemas com o antigo padre da freguesia. Mas o café por lá ficou, até ao ano passado, quando decidiu fechá-lo: “Já trabalhei muito. Agora quero descansar.”