Aquela coluna de fumo!

Foi aos microfones da TSF que a notícia acordou o país da letargia estival. Fogo no Chiado.

Era a madrugada de uma quinta-feira de Agosto de um Verão normal há 30 anos. A silly season não tinha sido decretada com o anglicismo que a castigou para sempre, mas já existia na versão portuguesa de país a banhos. Não havia redes sociais, nem debates exacerbados, e a maledicência nacional era comedida nos atrevimentos jocosos da Gente do Expresso e do Periscópio de O Jornal.

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Era a madrugada de uma quinta-feira de Agosto de um Verão normal há 30 anos. A silly season não tinha sido decretada com o anglicismo que a castigou para sempre, mas já existia na versão portuguesa de país a banhos. Não havia redes sociais, nem debates exacerbados, e a maledicência nacional era comedida nos atrevimentos jocosos da Gente do Expresso e do Periscópio de O Jornal.

O país era outro, portanto. A televisão era pública, limitada aos seus dois canais. A TSF, então TSF - Rádio Jornal, estava nos primeiros compassos e era ouvida com a devoção religiosa de uma novidade. Naquele 28 de Agosto teria, sem ironia, uma prova de fogo que a consolidaria. Foi aos seus microfones que a notícia acordou o país da letargia estival. Fogo no Chiado.

Da esquina do Rossio com a Rua do Carmo era visível o caos. Não havia Autoridade Nacional de Protecção Civil mas Sapadores Bombeiros de Lisboa e as corporações dos bairros da cidade. O Teatro de Operações, hoje designação popular, era um labirinto de ruas e comércios conhecidos a serem lambidas pelas chamas. Do Posto de Comando, parece que fulcral nos tempos actuais, sabia-se que havia alguém a ordenar o combate. Sem salas de reuniões sobre rodas. O SIRESP não falhava porque não exista. A luta ao fogo era de guerrilha urbana: rua a rua, prédio a prédio, telhado a telhado, casa a casa.

Observado do Largo do Carmo dava medo. Os comerciantes da Rua Garrett temiam o avanço das chamas. Os olhares de luto dirigiam-se para a fachada de um ícone do comércio lisboeta: o Grandella, os Armazéns Grandella, amigos desde 1789, protagonistas da recuperação da baixa depois do terramoto viriam a sucumbir. Desapareceram as prendadas vendedoras popularizadas no cinema português dos anos 50, que antes de serem tipos sociais eram símbolos e sonhos na nossa memória.

Na Rua Nova do Almada igual sufoco. Livrarias reconhecidas, lojas solenes, pastelarias distintas em risco. Algumas nunca voltariam. Nas ruelas e recantos por detrás dos Grandes Armazéns, durante décadas orgulho nacional de um consumo medido a tostões, consumia-se a destruição. Desapareceram restaurantes populares de robustas ementas regionais e, com eles, numa cidade de acolhimento, o reencontro com os sabores da infância à distância de um garfo.

Das cinzas, e contra todo o prognóstico, o presidente da Câmara Nuno Abecasis, criticado pelos obstáculos aos camiões de bombeiros com que queria embelezar a Rua do Carmo, saca um arquitecto de consenso: Siza Vieira. A recuperação travou medos, afastou a especulação maiúscula, mas os ponteiros do relógio não andaram para trás. Não é a mesma coisa que foi.

De um quarto andar de Arroios há a memória de uma coluna de fumo insólita sobre a cidade. Um cone negro que saía por entre telhados. Como hoje sabemos, sinal de alerta, prova de drama. E uma cortina de silêncio na cidade, apenas rasgada pelas sirenes. Uma falsa calma, um sossego traiçoeiro que a vida ensinou sempre acompanhar as desgraças.