O livreiro que desceu o Mondego para lutar contra a corrente

Em Março, Miguel de Carvalho deixou Coimbra, desanimado com a cidade. Reabriu portas na Figueira da Foz, onde os leitores estão a redescobrir este alfarrabista que leva 23 anos a comprar livros antigos.

Foto
Miguel de Carvalho tem 40 mil volumes no novo espaço da Figueira da Foz Nelson Garrido

Na corrente que vai arrastando as livrarias independentes para o encerramento, a de Miguel de Carvalho vai-se mantendo à tona. Deixou a casa onde estava desde 2001, na Baixa de Coimbra, anunciando o seu encerramento. Na Figueira da Foz, abriu uma nova livraria em Abril e, apesar de ter descido o rio Mondego, o gesto foi em contracorrente.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Na corrente que vai arrastando as livrarias independentes para o encerramento, a de Miguel de Carvalho vai-se mantendo à tona. Deixou a casa onde estava desde 2001, na Baixa de Coimbra, anunciando o seu encerramento. Na Figueira da Foz, abriu uma nova livraria em Abril e, apesar de ter descido o rio Mondego, o gesto foi em contracorrente.

A 31 de Março deste ano, entregou as chaves da livraria que tinha no Adro de Baixo, em Coimbra, onde era alfarrabista há 23 anos. Por coincidência, fechou no mesmo dia que a Pó dos Livros, em Lisboa. Contudo, o livreiro de 48 anos faz questão de sublinhar que não o fez por despejo, como aconteceu com outras casas do sector. A renda do prédio oitocentista de três pisos mantinha-se, mas o mesmo não acontecia com o número de pessoas que lhe entrava pela casa onde também organizava apresentações de livros, tertúlias e exposições.

“Chateei-me e vim-me embora”, resume Miguel de Carvalho ao PÚBLICO, sentado à mesa do piso térreo de um edifício que faz a esquina da rua de O Figueirense com a rua das Parreiras. Durante o tempo que esteve em Coimbra, assistiu à degradação da Baixa da cidade e à redução gradual de clientes. “Diminuindo o público, os eventos culturais também começaram a decair”.

Quem lhe comprava livros e morava na cidade mantinha a ligação, embora passasse a optar por uma outra modalidade. “Os clientes fiéis de Coimbra deixaram de ser fiéis à Baixa”, explica. Chegou a um ponto em que lhe telefonavam a pedir que enviasse os livros por correio. E Miguel Carvalho, que já então morava na Figueira da Foz, dá conta do absurdo: “deslocava-me a Coimbra, para pôr os livros nos correios de Coimbra para os clientes de Coimbra. Não fazia sentido”. E na Figueira já recebeu a visita dos clientes de Coimbra, conta.

Noutro capítulo, o alfarrabista faz um exercício que contrapõe uma lógica aparente: não é pelo facto de ser uma cidade universitária que se lê mais. “Coimbra tem mais de 1700 docentes universitários. Contava pelos dedos de duas mãos os académicos que iam à minha livraria e pelos dedos de uma os que realmente compravam livros”, afirma, num declínio que se acentuou desde 2005.

De qualquer das formas, já desde há alguns anos que vendia mais pela internet, onde mantém a loja online, do que ao balcão físico. À conjuntura acresce uma cidade onde os responsáveis políticos “confundem cultura com turismo” e a uma zona da urbe onde o “horário do comércio corresponde à passagem dos turistas”, afirma. “A Baixa precisa de dinamismo alternativo e cultural, o que não há”. Tomou então a decisão de tornar “mais séria” a casa na Figueira da Foz que já lhe servia de armazém e que até ia abrindo aos sábados.

Miguel de Carvalho formou-se em geologia, actividade que foi exercendo com maior ou menor frequência até 2005, em trabalhos de investigação. Começou a comprar livros antigos há 23 anos, “por brincadeira”, mas acabou por se tornar na sua actividade a tempo inteiro. “A geologia foi uma aventura apaixonante na minha vida, mas não foi suficiente para ultrapassar a dois livros”, rememora. Insistir na actividade é um acto de “carolice”.

Procura-se "marginalidade"

Enquanto conversa com o PÚBLICO, a um início de tarde soalheiro de estio, vão-lhe entrando na livraria, descobrindo o espaço e as estantes preenchidas por cerca de 40 mil volumes. “Estou a captar um público local que desconhecia a minha actividade”, refere. Quem ali vai, encontra essencialmente literatura portuguesa, mais dos século XIX e XX. Entre os mais procurados estão Herberto Hélder, Mário Cesariny ou Luiz Pacheco, autores “considerados de uma certa marginalidade da literatura portuguesa”. Traça a distinção entre o leitor e o coleccionador, entre que procura o livro “como veículo de informação” e quem busca “o objecto de posse”. No entanto, esta modalidade tem vindo a decair. Se há maior dificuldade em encontrar livros raros, nota também um menor poder de compra.

A livraria está longe de ser monotemática. Em Julho, adquiriu a biblioteca ao professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra Pedro Dias, tendo dado entrada um espólio de mais de um milhar e meio de livros sobre história da arte e expansão marítima portuguesa.

A agenda cultural que tinha em Coimbra não viajou com Miguel de Carvalho. Há uma impossibilidade física de o continuar na Figueira, onde o espaço da livraria é exíguo. Prossegue a actividade editorial com a Debout Sur L'Oeuf, a sua editora independente que se identifica com o surrealismo e pela qual têm três projectos em curso, para publicar ainda este ano.

Entre tudo o que mudou, permanece o balcão. “É uma ajuda. Um local de encontro, de conversa, de convívio e de partilha”, descreve. É importante o contacto directo com os leitores, “sentir o que interessa, fazer chegar às pessoas livros que não encontram nas grandes cadeias de livrarias”.