Em desumanização galopante

Hoje, precisamos sobretudo de diálogo, de confiança e de nos tratarmos como pessoas reconhecendo o papel dos profissionais e as necessidades dos doentes, isto é, um Serviço Nacional de Saúde mais humanizado.

A Ordem dos Médicos, em conjunto com as suas congéneres dos países ibero-americanos, levou à UNESCO um pedido de reconhecimento da relação médico-paciente como património cultural imaterial da Humanidade como forma de fortalecer a humanização na Saúde.

Um dos grandes problemas da Saúde em Portugal é a desumanização, em passos galopantes, dos seus serviços.

No final do ano passado, Portugal foi dos primeiros países a adotar a atualização do Juramento de Hipócrates, juramento que todos os médicos prestam no início da sua carreira, e que coloca o doente numa posição central e capaz de decidir, em conjunto com o seu médico, dos cuidados de saúde que irá receber.

No entanto, a pressão colocada sobre os profissionais e sobre os doentes, de fundamento essencialmente economicista e burocrático, está a destruir uma ligação milenar, levando os primeiros à exaustão e os segundos à perda da confiança no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e nos seus profissionais.

A ligação entre o médico e o seu doente é absolutamente fundamental no contexto da Saúde. A ligação entre toda a equipa que intervém nos cuidados e o doente e suas interações são de uma importância decisiva para a evolução da área da Saúde e dos seus profissionais.

A recente extensíssima entrevista de um ex-secretário de Estado da Saúde e ex-consultor da Raríssimas, administrador hospitalar de carreira, desacredita o SNS, descredibiliza os seus profissionais, esquece-se dos doentes e dos seus problemas e prejudica gravemente a relação entre os médicos e os seus pacientes.

Manuel Delgado enjaulou-se numa visão fria e estritamente académica dos graves problemas que os doentes e os profissionais enfrentam cada dia e esqueceu que esta área crucial, mais do que de percentagens e de procedimentos, é feita de pessoas que nunca poderão ser apagadas de uma simples folha de Excel como se apagam ou corrigem números e fórmulas. Esta visão aposta essencialmente numa taylorização de todo o sistema, como se os profissionais fossem máquinas e os doentes meras peças de montagem. Não é disto que o País precisa.

No dia em que a duração de uma consulta médica for definida por burocratas, que o tempo de internamento de um doente for decidido por gestores-contabilistas ou que a prescrição de um medicamento A, B ou C estiver tecnicamente dependente de um qualquer administrador, o SNS deixará de existir porque ninguém confiará nele e perderá o propósito para o qual foi criado.

A entrevista de Manuel Delgado aproveita ainda para enaltecer a capacidade gestionária das Parcerias Público-Privadas como solução abracadabrante para todos os males, descredibilizando múltiplas vezes o trabalho hercúleo desenvolvido nos hospitais e centros de saúde do SNS, bem como a sua eficiência. Este é o pior caminho para o desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde. Ao querer favorecer o setor privado acabará por prejudicá-lo.

Menorizar o papel dos profissionais, tentar denegrir a relação entre os médicos e os seus doentes e prejudicar a ligação entre as pessoas e o SNS, numa altura de enorme fragilidade do sistema de saúde, é um sinal de profunda irresponsabilidade.

Hoje, precisamos sobretudo de diálogo, de confiança e de nos tratarmos como Pessoas reconhecendo o papel dos profissionais e as necessidades dos doentes, isto é, um Serviço Nacional de Saúde mais humanizado.

Presidente Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos

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