Ups, eles fizeram-no outra vez

Ty Segall e White Fence assinam novo álbum que o futuro guardará como culto a prezar.

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Como um portal que nos permite aceder ao momento em que dois espíritos diferentes se fundem num terreno comum DENEE SEGALL

Há seis anos, Ty Segall, arauto do rock’n’roll com rock escrito em letras flamejantes e acento no roll, e Tim Presley (White Fence), explorador de psicadelismos com Ray Davies e Syd Barrett no coração e cabeça nas nuvens de Tomorrow never knows, reuniram-se para criar um clássico moderno do rock psicadélico. Chamaram-lhe Hair e é daqueles discos de culto destinados a serem descobertos no futuro, geração após geração, por felizardos a quem bons amigos oferecem boas recomendações. Seis anos e muitos álbuns depois, Segall e Presley voltam a encontrar-se.

Neste intervalo temporal, Segall confirmou-se como um dos nomes imprescindíveis do rock’n’roll do novo milénio, senhor de uma produtividade torrencial que, no início deste ano, nos ofereceu o belíssimo álbum duplo Freedom’s Goblin, o décimo da sua carreira —  só a versão de Every 1’s a winner, original dos Hot Chocolate, já valia um disco inteiro. Tim Presley, por seu lado, interrompeu por algum tempo o seu trabalho enquanto White Fence para formar os DRINKS com Cate Le Bon —  o deliciosamente disfuncional Hermits on Holiday, operação de desconstrução rock e surrealismo pop criado por dois músicos que se descobriram almas gémeas, foi editado em 2015 e sucedido este ano por Hippo Lite.

Neste novo encontro, a liberdade estilística de Freedom’s Goblin, caleidoscópio das paixões de Segall, faz eco com o carácter exploratório do percurso de Presley com Cate Le Bon. Ao longo de trinta minutos e quinze faixas, ouvem-se pequenos excertos folk-rock cantados em voz delirante, caem acordes distorcidos como em delírios metaleiros irreprimíveis, viaja-se embalado por psicadelismo pop à procura de fuga no fuzz de uma guitarra, ouve-se folk acústica sussurrada em alpendre imaginário ou canções criadas como colagens à maneira das micro-óperas de Pete Townshend por alturas de A quick one, while he’s away —  com a diferença de que, enquanto os The Who criavam aí um mini épico de 9 minutos, Ty Segall e os White Fence despacham a coisa em dois minutos.

Além da certeza no gesto criativo e no diálogo entusiasmado que aqui se regista —  Joy não é título inocente — , o álbum vai-se revelando como um portal que nos permite aceder a esse momento em que dois espíritos diferentes se fundem num terreno comum. O mais interessante, à medida que se sucedem as suas micro-canções (a maioria não chega aos dois minutos de duração) e à medida que somos alegremente sacudidos pelas suas mudanças de direcção, é sentir uma sofreguidão iluminadora, sem paciência para perder tempo algum com pormenores desnecessários. É uma viagem rápida e intensa e não perdemos tempo a olhar para trás. Cometa fascinante este que vemos passar por nós tão rápido. À segunda tentativa, Ty Segall e White Fence assinam novo álbum que o futuro guardará como culto a prezar. Comecemos já.

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