Fez um vídeo viral sobre o aborto e quer “reciclar” a publicidade: eis a luta de Laura

Com um vídeo de 49 segundos, Laura Visco pôs milhares de pessoas a falar sobre o aborto. A publicitária argentina de 38 anos acredita que pode "reciclar a forma como a sociedade pensa" através da publicidade.

O Senado argentino reunia-se para debater o aborto e Laura Visco reflectia sobre o que ali se votava naquele dia. A decisão era sobre a descriminalização do aborto e a publicitária usava o Google para perceber o fundo da questão. Ao escrever "Como abortar com..." o motor de busca devolvia dezenas de sugestões consoante a primeira letra da palavra seguinte. Álcool, agulhas, aloe vera, aspirina, café, orégãos. E por aí adiante. Laura decidiu fazer um vídeo com aquela pesquisa, terminando-o com uma mensagem. "Se não é legal, é clandestino", escreveu, acrescentando um apelo: "Aborto, já."

"Nenhuma mulher deveria ter de googlar como fazer um aborto caseiro com salsa, uma cruzeta ou uma injecção de Coca-Cola no útero. Nenhuma. Marquem os senadores que estão a votar agora, façam-nos saber o que estão realmente a votar quando votam contra a legalização e despenalização do aborto." A mensagem que Laura Visco juntou ao vídeo de 49 segundos já não chegaria aos ouvidos dos decisores políticos — ou pelo menos não teria efeitos práticos, já que o Senado acabou por votar contra a descriminalização. Mas o vídeo teve mais de 40 mil visualizações na página da publicitária e ultrapassou os dois milhões noutras contas.

Foto
Laura Visco nasceu em Buenos Aires e vive em Amesterdão DR

"O que o vídeo faz é contextualizar o problema: enquanto um grupo de 38 senadores está a debater se é moralmente certo ou errado abortar, uma rapariga está a pesquisar no Google como fazer um aborto com uma cruzeta", disse ao El País a publicitária de 38 anos. Apesar da batalha não ter sido ganha, Laura Visco acredita que algo ficou diferente: "Continuarmos com uma lei de 1921 é insultuoso, realmente. Mas nas ruas já ganhamos, a lei há-de sair. A mudança cultural já foi feita e a popularidade deste vídeo é um indicador disso mesmo", declarou.

A intervenção social de Laura não é de hoje. A publicitária nascida em Buenos Aires e a trabalhar na agência 72andSunny, em Amesterdão, tem sido apontada como uma voz diferenciadora (o jornal La Nación dá-lhe os louros de ter "mudado a cara da publicidade machista"). O seu mais recente projecto — em parceria com Maddy Kramer e Josefina Franci — procura combater a invisibilidade das mulheres na indústria publicitária. "Menos de 3% dos directores criativos das empresas são mulheres", lê-se na descrição do projecto Invisible Creatives, uma espécie de "banco de dados de criação feminina" com trabalhos de mulheres de todo o mundo (Inês F. Mota é para já a única portuguesa presente).

Laura Visco, apaixonada por viagens e vegetariana convicta, começou a trabalhar aos 19 anos em agências de publicidade argentinas e desenvolveu algumas campanhas que se tornaram marcantes no seu país. E fora dele também. Trabalhou com marcas como a Uber, Camper, Nike e é responsável pela “reciclagem” da Axe, graças a um vídeo onde, abordando o conceito de masculinidade, deu uma volta de 180 graus à política da marca. O "efeito Axe" durou mais de 30 anos, com publicidades que se rendiam a uma fórmula quase sempre igual: um homem a conquistar uma mulher pelas suas feromonas. A criativa argentina decidiu mudar o chip.

Publicidade feita para a Axe

Em 2015, à boleia da campanha #NiUnaMenos, a empresa Unilever aceitou embarcar numa viagem onde a sedução não tinha um só caminho. "Is its ok for guys?" ("Isto é coisa de homem?" numa tradução livre) pegava também nas perguntas mais frequentes do Google para fazer um vídeo impactante que conseguiu elogios de grupos feministas, teve honras de capa da New York Times e foi até falado pelas Nações Unidas. "É coisa de homem vestir cor-de-rosa, comer tofu, gostar de gatos, experimentar sair com outros rapazes?"

A publicitária quis mostrar que sim: "O homem passa toda a sua vida a ter cuidados para não ser etiquetado de maricas e não sair da norma de ser forte, bem-sucedido, masculino. É uma mini-prisão: a nós impedem-nos de crescer para cima; a eles, impedem-nos de crescer para dentro. Não lhes é permitido estar em contacto com os seus sentimentos ou mostrar debilidade", lamenta Laura numa entrevista dada ao La Nación.

Não é um caminho simples. Na Rússia, por exemplo, o vídeo foi editado e publicado sem a parte onde dois homens se relacionavam. "Um tipo acusou-me, muito agressivo, de fazer propaganda gay. Disse-me que se [eles] começassem a ser mulheres, ficaríamos sem homens. Respondi que não propunha que fossem mais femininos, mas sim mais felizes, o que não tem nada a ver com género. Um homem mais livre é um homem mais feliz."

A publicidade, acredita Laura Visco, "pode reciclar a forma como uma sociedade pensa". E esse "grande poder" do seu ofício tem de ser usado: "Há gente obcecada em ganhar prémios. Eu sou obcecada por quebrar estereótipos, dar-lhes a volta".

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