Ainda sobre Marine Le Pen e a liberdade de expressão

Paddy Cosgrove tem de explicar melhor que créditos tem Marine Le Pen para falar sobre o tema. Ou então a Web Summit é um circo montado para dar dinheiro aos ganhar aos seus organizadores, onde qualquer bizarria como um homem (ou, neste caso, mulher) elefante ajuda a ganhar mais uns trocos.

Alpha Dallo é um rapper francês que responde pelo nome artístico de Black M, ou Black Mesrimes. O presidente da Câmara de Verdun convidou-o, em 2016, para participar nas comemorações do centenário da batalha que tornou a cidade tristemente célebre.  Verdun conheceu uma das batalhas mais sangrentas da primeira guerra mundial, que opôs os exércitos alemão e francês durante dez meses em 1916 e provocou 700 mil mortos. Caras leitoras e caros leitores, são cerca de 2300 soldados mortos por dia, aproximadamente metade de cada lado do conflito.

O objetivo era envolver os jovens, que muitas vezes não se interessam por cerimónias oficiais, mas a quem temos o dever de transmitir a história terrível e os sacrifícios das gerações precedentes, graças aos quais vivemos numa Europa livre, pacífica e democrática. Também em Portugal bandas como Buraka Som Sistema, Da Weasel, ou o vocalista destes,  Carlão, antes conhecido por Pacman, tocam ou tocaram nas comemorações do 25 de abril, presumivelmente com o mesmo objetivo de integrar nas celebrações quem não adere a paradas militares e discursos oficiais.

Contrariamente aos fãs de rap e hip-hop portugueses, os franceses não dançaram ao som de Black M em Verdun. O concerto foi anulado depois de declarações de vários responsáveis do partido de Marine Le Pen, incluindo a própria, o seu vice, Florian Philippot, e a sua sobrinha e deputada Marion Maréchal Le Pen terem incendiado as redes sociais de tal forma que as autoridades locais acabaram por desistir do evento, por receio de tumultos e sob  ameaças à integridade física do presidente da Câmara e do músico. Marion Maréchal Le Pen não se coibiu de publicar um esclarecedor “Vitória!” no Twitter, poucas horas depois do anúncio da anulação.

Black M respondeu passados três meses com o single “Je Suis Chez Moi”, ou  seja, “estou em casa” – algo óbvio para a maior parte de nós, mas não para Le Pen, para quem a França  pertence apenas a alguns franceses, com  a cor de pele certa. Na canção, que inclui uma referência explícita ao tweet de Marion, afirma o orgulho em ser francês de origem guineense e a dificuldade de viver com o olhar por vezes esquivo dos seus compatriotas, talvez por ser demasiado escuro. Lembra o avô, senegalês que  lutou pela França na segunda guerra mundial, o que devia ser irrelevante para o lugar de Black M num país democrático. O facto de o cantor se socorrer dos créditos bélicos do antepassado testemunha a violência que os nacionalistas da laia de  Le Pen impõem aos seus compatriotas de outras etnias.

No capítulo “defesa das liberdades fundamentais” do curriculum de Marine Le Pen, aconselho também uma pesquisa sobre as inúmeras queixas da imprensa local nos municípios com presidentes do Front National, ou uma análise à exclusão de alguns media da cobertura  da candidatura presidencial da própria.

Antecipo que quem defendeu o direito da Web Summit a convidar Le Pen em nome da liberdade expressão, como João Miguel Tavares nas páginas do PÚBLICO, entende que a diferença entre nós, os democratas liberais, e Marine Le Pen, é que nós lhe permitimos que se exprima livremente. Mas uma coisa é tolerar a existência de um partido como o seu ou que ela visite Portugal – como já fizeram outros membros do seu partido – a convite do PNR. Outra é acolhê-la num evento patrocinado duplamente pelo estado português, com dinheiro e presenças ilustres. A democracia não pode ser ingénua e alimentar desta forma os seus piores inimigos, ou acordará um dia como Sigourney Weaver, com um Allien a sair-lhe das entranhas. Aliás, comemorar a Batalha de Verdun recorda-nos, ano após ano, que a nossa organização política atual não está garantida perenemente.

Porque das duas, uma. Ou a Web Summit é um encontro internacional de empreendedores da Web – e então admito até que possa justificar-se que o governo português subsidie o evento, mas Paddy Cosgrove tem de explicar melhor que créditos tem Marine Le Pen para falar sobre o tema. Ou então a Web Summit é um circo montado para dar dinheiro aos ganhar aos seus organizadores, onde qualquer bizarria como um homem (ou, neste caso, mulher) elefante ajuda a ganhar mais uns trocos. Nada contra, mas então o governo e a Câmara de Lisboa não devem meter-se nisso. Num momento em que o seu partido enfrenta graves problemas financeiros e a possível bancarrota, entre outras razões  devido a vários processos judiciais, compreendo que convenha a Marine Le Pen ter palco e, melhor ainda, ser paga por ele; mas, por favor, não com o dinheiro dos meus impostos.

Professora na Nova School of Business and Economics

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