Exumação de Franco abre portas à anulação de sentenças da ditadura

O Governo do PSOE aprovou esta sexta-feira a retirada dos restos mortais do ditador do Vale dos Caídos, mas a esquerda e os independentistas catalães querem ir muito mais longe no debate sobre o franquismo.

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Memorial às vítimas do franquismo erguido numa vala comum em Oviedo - tem o nome de 1600 homens e mulheres e as datas das execuções Alonso Gonzalez/REUTERS

A aprovação do Governo socialista espanhol à retirada dos restos mortais do ditador Franco do monumento do Vale dos Caídos, nos arredores de Madrid, veio reacender um debate maior que continua a mexer com a sociedade do país. Apesar de nenhum partido, da esquerda à direita, se opor a essa medida em particular, os independentistas catalães aproveitaram o debate para exigirem algo que nem o Governo de Zapatero quis fazer em finais de 2007, quando andava perto da maioria absoluta: a anulação de todas as decisões dos tribunais do franquismo.

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A aprovação do Governo socialista espanhol à retirada dos restos mortais do ditador Franco do monumento do Vale dos Caídos, nos arredores de Madrid, veio reacender um debate maior que continua a mexer com a sociedade do país. Apesar de nenhum partido, da esquerda à direita, se opor a essa medida em particular, os independentistas catalães aproveitaram o debate para exigirem algo que nem o Governo de Zapatero quis fazer em finais de 2007, quando andava perto da maioria absoluta: a anulação de todas as decisões dos tribunais do franquismo.

Na última vez que o Parlamento espanhol aprovou medidas de fundo sobre o período do franquismo, há 11 anos, o Governo socialista de Zapatero aprovou a Lei da Memória Histórica. Nessa altura, centenas de ruas e praças com nomes ligados ao período da ditadura foram alterados, e centenas de milhares de filhos e netos de espanhóis que emigraram ou que se exilaram durante a Guerra Civil e a ditadura recuperaram a nacionalidade dos pais e avós.

Mas nem os 164 deputados em 350 que o PSOE tinha no Parlamento foram suficientes para anular as condenações que levaram à execução de figuras como Lluís Companys, o presidente da Catalunha durante a Guerra Civil espanhola (1936-1939).

Para além da falta de condições políticas, o debate sobre a anulação das sentenças do franquismo foi esbarrando nas decisões do Tribunal Supremo. Para os juízes, os tribunais da época – durante e depois da Guerra Civil – cumpriam a lei que estava em vigor, e por isso não há motivos para anular essas decisões.

Mais de uma década depois da aprovação da Lei da Memória Histórica, a questão dos tribunais do franquismo volta a entrar no debate político do país, depois de o novo Governo socialista de Pedro Sánchez ter prometido levar à prática a retirada dos restos mortais de Franco do monumento do Vale dos Caídos, inaugurado em 1959 pelo ditador com o argumento de ser uma homenagem as vítimas da Guerra Civil, mas que divide a sociedade espanhola – é um lugar de romagem para admiradores de Franco e um sítio marcado para transformação pelos opositores da ditadura.

Hoje, o Governo do PSOE aprovou em Conselho de Ministros um decreto-lei para resolver a primeira parte do problema, sobre a exumação dos restos mortais de Franco. E comprometeu-se a pegar na questão mais complicada, sobre a anulação das sentenças dos tribunais do franquismo, em resposta aos pedidos dos partidos que o apoiam no Parlamento – em particular da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) e do Partido Democrata Europeu Catalão (PDeCAT).

"Se o Governo do PSOE quer o apoio da ERC para exumar Franco, deve comprometer-se com a anulação da sentença do president Companys, símbolo de milhares de catalães e espanhóis fuzilados", disse o porta-voz da ERC, Joan Tardá, citado pelo El País.

O outro partido independentista catalão, o PDeCat (direita), já anunciou que vai apoiar o decreto-lei do Governo sobre a exumação dos restos mortais de Franco, mas exige que se comece a discutir a reforma da Lei da Memória Histórica de 2007, precisamente para que sejam anuladas as sentenças decretadas pelos tribunais do franquismo.

Também o Unidos Podemos já se pronunciou sobre este debate, pondo em cima da mesa uma mudança ainda mais profunda – mais do que a reforma da Lei de Memória Histórica, a porta-voz da coligação pediu uma revisão da lei da amnistia de 1977. "Não é possível que os crimes do franquismo não tenham sido julgados e que a lei de amnistia se tenha transformado numa lei e ponto final", disse Ione Belarra, citada pelo El País.

Mais afastados desse debate, o Partido Popular e o Cidadãos têm-se focado no decreto-lei para a exumação dos restos mortais de Franco. Apesar de ambos os partidos estarem de acordo com a exumação, nenhum dos dois concorda com a forma que o Governo escolheu para concretizá-la. À imagem das críticas contra outros decretos-lei que têm sido aprovados desde que o PSOE chegou ao Governo, em Junho, o PP e o Cidadãos consideram que a exumação dos restos mortais de Franco não é uma medida urgente, e por isso não se justifica ser feita por decreto-lei.

Apesar de o PP ainda não ter anunciado o seu sentido de voto, a abstenção do Cidadãos, já indicada pelo presidente do partido, Albert Rivera, garante a aprovação do documento.

A maioria dos especialistas em Direito considera que uma anulação das sentenças dos tribunais do franquismo é possível, mas teria apenas efeitos simbólicos, já que as vítimas e as suas famílias não teriam direito a pedir indemnizações. Mas também há quem alerte para possíveis consequências não desejadas, como uma avalancha de pedidos de anulação de outras sentenças comuns, não relacionadas com a perseguição política.

É por isso que o ex-deputado do PSOE Diego López Garrido, professor de Direito Constitucional, avisa que pode estar em causa "uma total insegurança jurídica".

"Se anulamos uma sentença dos tribunais por ilegitimidade do regime, temos de poder anular todas", disse o especialista ao El País, explicando o seu raciocínio: "É claro que os conselhos de guerra eram ilegítimos; mas era tudo ilegítimo, não se pode dizer que de repente desaparecem todas as sentenças judiciais. Se isso for feito pela via legislativa, podemos vir a ter milhões de pedidos contra sentenças de tribunais. O que pode acontecer em Espanha é tremendo", disse Diego López Garrido.